quinta-feira, 29 de março de 2012

Quebra de protocolo

Não é o costume, mas muitas vezes no final de uma programação acontece de cada um dos tripulantes correr para sua casa e nem se despedir dos colegas. É uma situação chata; passar alguns dias juntos e no final, nem um tchau! Mas os tripulantes já estão acostumados, sabem que não é por mal, mas por pressa de se mandar. Uns correm para pegar a condução, outros para entrar em seus carros e chegar em casa antes do rodízio municipal de veículos (em São Paulo tem disso), uns correm para embarcar em outro voo e há aquele que corre com o receio de que a empresa o escale para mais um voo. Dificilmente a tripulação desembarca junta ou sem pressa!

Certa vez minha mulher e eu estávamos conversando com um colega de aviação quando sua esposa me perguntou se após o voo eu ia direto para casa ou dava uma passada no D.O., a sala onde os tripulantes se reunem. - É claro que eu vou direto para a casa, nem pensar em passar no D.O. – respondi com firmeza. Pois ela se virou para o marido e foi dizendo em tom de sermão – Tá vendo, direto para casa, sem ficar de papo furado com os colegas e principalmente com as colegas! Tentei salvar a situação dizendo que ele é quem estava certo, pois ao terminar uma programação e dar um pulo do D.O., além de ficar a par das novidades da empresa, ele ainda podia baixar a “adrenalina” do voo e esperar o trânsito diminuir. Acho que não colou.

Nunca fui de ficar de bobeira no aeroporto, mas recentemente quebrei o meu próprio protocolo e fiquei de papo furado no D.O. Naquela tarde, ao chegar em Congonhas por volta das duas da tarde após apenas uma etapa de voo, não tive pressa para chegar em casa. A tarde ia tranquila, minha mulher estava em Londres, os filhos na escola onde eu ficara de buscá-los e eu com tempo para perder. Entrando no D.O. encontrei um antigo colega de Varig que eu conhecera em 1986. Logo se formou uma roda, muito bom encontrar os amigos.

Antigamente, quando Vasp, Transbrasil e Varig eram as três grandes empresas aéreas brasileiras, os grupos de tripulantes eram estanques, havia pouco contato entre os pilotos. Com a quebra destas empresas os pilotos se espalharam, o grupo se misturou e hoje temos colegas em todas as empresas e há uma troca de informação bastante grande. Na minha quebra de protocolo, ao tomar um cafezinho no saguão do aeroporto, reencontrei colegas que hoje estão voando em outras empresas e conheci outras pessoas. Foram mais de duas horas naquele ambiente de aeroporto, até parecia que eu estava cumprindo um plantão mas com a tranquilidade de saber que eu não iria trabalhar, sem susto quando o alto falante do D.O. anunciava o nome de um tripulante. Aproveitei para comprar uns DVDs na banquinha do outro lado da avenida Washington Luis, passei na área administrativa da empresa para saber quando estará programado minha próxima sessão periódica de simulador e já que estava na área, também dei um pulo no setor de uniformes para pegar umas peças de reposição.

Voltando ao D.O., mais uns colegas para botar o assunto em dia, e mais uma dose de cafezinho vendo o movimento na área de check-in. Olhei as horas e já estava na hora de ir buscar as crianças. Foi legal, diferente, e o bom é que com toda a conversa, ninguém me perguntou que voo eu ia fazer ou se estava de reserva, pois confesso, estava até sem graça de dizer que eu estava apenas curtindo minha tarde.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Mãe de piloto

Juro que não queria ter um filho piloto.  Tantas profissões legais, onde as pessoas vivem com o pé na terra, voltam para casa quando termina o expediente lá pelo entardecer, até conseguem pegar um cineminha depois do jantar, descansam nos fins de semana – ou ficam exaustos quando têm filhos pequenos – vão a todos os jantares de aniversário da família...E meu filho cismou de ser piloto ! Acho até que está no DNA do moço. Afinal, nunca tivemos contato com profissionais da aviação que pudessem influenciá-lo para esta carreira ‘tão perigosa e cheia de riscos’.

É. Está no sangue. E estava no sangue quando ele, já aos 12 anos, colecionava tudo sobre aviões, desde guardanapos, saleiros e tickets com os logos das diversas companhias que desembarcavam por aqui  e até miniaturas de aviões que ele dependurava no teto. Fora os quadros e posters que enchiam as paredes do seu quarto. 

Na época, não me preocupei com aquela ideia fixa. Vai que ele se imaginava com um quepe na cabeça e com aqueles uniformes cheios de galões dourados (cujo nome certo é divisas, hoje eu sei ) enfrentando tempestades e turbulências. Que herói! Crianças são mesmo fantasiosas e, quando crescem aposentam os sonhos e entram na real. Meu filho, certamente, estudaria para ser engenheiro ou advogado ou médico, ideais de toda mãe naqueles  anos. Teria uma profissão com o pé na terra.

Doce engano. Depois de uma curtíssima fase ligado em cavalos e equitação (ai meu Deus, de piloto para jockey... sei lá), meu filho voltou a dizer – e agora com mais determinação – que gostava mesmo era da aviação. 

E se estava no sangue, o remédio era apoiá-lo. Nada de ver perigo em cada voo, nada de considerar cada aeronave uma arma mortífera e cada ventinho um inimigo cruel. Até que me tornei aquela mãe legal. Como ele não tinha idade para dirigir, eu levava meu filho ao Campo de Marte para as aulas teóricas e práticas e sempre que podia dava um dinheiro para uma hora de voo; um passo a mais em direção ao seu sonho. Enfrentei com galhardia as saudades quando ele foi estudar na EVAER em Porto Alegre, sabendo que era mais um filho saindo de casa para a vida.

Ficava feliz cada vez que ele passava de um estágio para outro em seu trabalho. Copiloto, piloto, comandante, ponte aérea, voos para todo o Brasil, voos para a Europa... Quando a Varig começou a entrar em colapso, fiquei angustiada vendo a preocupação e ansiedade em seu olhar, em seu dia a dia. Não é que me angustiei a toa? Meu piloto seguiu em frente, partiu para uma nova companhia e continuou voando. Estava no sangue.

Hoje, sou uma orgulhosa mãe de um piloto e, como minha nora é comissária de bordo e também vive no ar, tenho até uma escala para ajudar com os netos: fico de plantão, de sobreaviso e passo noites fora da minha casa.  Tenho o privilégio de um convívio muito próximo com os netos, a possibilidade de viagens com meu filho e tenho o sentimento raro de saber que ele faz – e faz bem – o que ele sempre quis fazer na vida: Voar.



          As fotos: 
  • Em 1983 saindo para um voo do Campo de Marte com sobrevoo de Bragança e Jundiaí
  • Em 1995 numa escala em Porto Velho
  • Em 2005 com a minha tia em viagem para Madri





domingo, 4 de março de 2012

Bagunceiros e arrumadinhos

Uma das coisas que primeiro chama a atenção dos passageiros ao embarcar num avião é a limpeza da cabine. Um interior limpo, sem que o tecido das poltronas esteja manchado, cabeçotes no lugar, cintos de segurança cruzados sobre o assento e sem restos da viagem anterior dão ao avião um aspecto de um ambiente seguro. Antigamente, na "velha Varig", a limpeza interna dos aviões era tão importante que frequentemente o embarque ficava retido até que a cabine de passageiros estivesse de fato limpa e arrumada. Nos voos internacionais o capricho era maior ainda e dava gosto entrar num daqueles aviões e ver tudo arrumadinho, cada assento com uma manta e um travesseiro.

Infelizmente o atual modelo de baixo custo e máxima utilização dos aviões fez com que a limpeza e organização do interior das aeronaves perdessem a importância. É cada vez mais comum que os passageiros ao embarcar encontrem restos de alimentos espalhados pelo chão e sobre os assentos, tecidos manchados, restos de papeis e embalagens nos bolsões dos assentos e os cabeçotes (que um dia já foram de tecido), amassados. Durante o curto tempo de solo o máximo que é feito é um "tapa" na sujeira maior, deixando o capricho para quando o avião fica parado mais de três horas. Aí sim a limpeza é para valer! Uma equipe entra munida de vassouras, panos e produtos para faxinar o interior do avião. De tempos em tempos o exterior do avião também recebe uma boa lavada, assim como a cabine de comando, que ao longo de dias de operação, acaba acumulando muita sujeira: papeizinhos, restos de alimentos, café e chimarrão, clipes e tampas de canetas que se perdem no assoalho e nas pequenas frestas junto aos diversos painéis.

Uma das preocupações dos pilotos é quanto a limpeza dos equipamentos de comunicação e máscaras de oxigênio. Fones de ouvido, microfones e máscaras de oxigênio sujas podem ser transmissores de bactérias. Por isso recebíamos na cabine (mais uma vez eu me refiro ao passado, à "velha Varig") a famosa celeste! São lenços umedecidos concebidos para a limpeza e higienização dos equipamentos de oxigênio e comunicação. Este lencinho era item obrigatório no bolso da calça dos pilotos. Para o Boom-Mike (fone de ouvido com microfone acoplado) havia além de espumas para reposição, pequenas touquinhas descartáveis. Atualmente a celeste está desaparecida, nunca mais a vi. O jeito é improvisar com álcool em gel e guardanapos para enrolar nos fones de ouvidos.

Num grupo tão grande de pilotos há aqueles que quando saem da cabine deixam para trás uma verdadeira bagunça e há os que, mais que deixar a cabine limpa e organizada, possuem uma verdadeira loucura por limpeza.

OS BAGUNCEIROS: Não se incomodam em deixar a cabine bagunçada. São jornais espalhados, copo com líquido, cartas de pousos e navegação fora de ordem e antigamente, quando era permitido o fumo a bordo, ainda tinha a chance de se encontrar cinzeiros cheios ou um copo com bitucas imersas em água. Felizmente o cigarro foi abolido. Certa vez, quando voava na Ponte Aérea, recebi o avião do meu querido colega Bajinsky. Um cara fantástico, excelente profissional, mas que tinha a capacidade de deixar a cabine muito bagunçada, com jornais espalhados e  outros tipos de  sujeira. Pois bem, passado alguns dias ele foi meu passageiro até Congonhas, sendo que a partir de lá, eu desembarcaria e ele assumiria o comando do Boeing. Era a oportunidade da "vingança" e em 40 minutos de voo eu espalhei os jornais Folha de São Paulo, "Estadão" e um Globo por onde houvesse espaço. Deixei cascas de mexirica, copo com restos de refrigerante,  manuais fora do lugar e uma bagunça nas cartas de navegação. Ao desembarcar em Congonhas passei a ele as informações de praxe e me mandei deixando para trás uma cabine que mal dava para entrar. Dias depois (havendo um grupo fixo na Ponte Aérea, nos encontávamos semanalmente) nos encontramos novamente e ele comentou que apenas estranhou um pouco o fato, pois me julgava um cara organizado, talvez eu estivesse estressado, mas que o pessoal da limpeza quase caiu para trás ao ver aquela zona!

OS ARRUMADINHOS: São obcecados pela limpeza e organização e para isso não medem esforços e recursos. Alguns carregam um pequeno pincel e assim que sentam no assento da cabine se poem a limpar cuidadosamente os painéis. Outro recurso muito utilizado são os "wipes", aquelas toalhinhas umedecidas e descartáveis. E aí não posso deixar de recordar o meu amigo Oppermann que ao voar com um destes comandantes que possuem um verdadeiro conjunto de pinceis para limpeza, não perdeu a oportunidade para aprontar mais uma das suas. Depois que o comandante já tinha pincelado todo o painel, ele pegava um sanduiche e oferecia ao comandante. Só que antes de oferecer ele embrulhava em um guardanapo e amassava bastante de forma que ao abrir era inevitável que as migalhas se espalhassem pelo painel. O comandante ficava louco, e o Oppermann dava risada! Havia um outro colega que também era obcecado pela organização. Ele limpava tudo que pudesse ser limpo, desde os diversos seletores e painéis,  até os vidros das janelas. Limpava meticulosamente de forma que não ficasse qualquer sujeirinha ou mancha de dedos ou mãos nos vidros. A mulher dele, que é comissária, já sabe: ele é sempre o último a sair do avião, não sai da cabine até que tudo esteja perfeitamente limpo e organizado, com cada coisa no seu devido lugar.