quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Madrugada na Amazônia


Nas programações de viagens dos tripulantes, há vezes em que devemos nos deslocar para outra cidade na condição de passageiro, para então assumir um voo. Em certas ocasiões, após este deslocamento, seguimos para o hotel para o pernoite já que o voo a ser assumido é só no dia seguinte. A empresa determina qual o voo em que devemos seguir de passageiro e de um modo geral sempre cumprimos a programação, porém, não raro, o tripulante prefere seguir em um voo mais tarde.  Nestes casos ele assume os riscos, pois desta forma, não há garantia de assento disponível e não há condução para um eventual deslocamento aeroporto/hotel. O tripulante terá que lidar com as consequências de um atraso, um cancelamento de voo ou outros imprevistos. Ao optar por um deslocamento em um voo diferente daquele programado pela escala, é bom pensar bem, e ter uma alternativa.

Certa vez, quando eu era comandante de 737-200, minha tripulação seguiu para Manaus na condição de passageiro, e fomos para o hotel, chegando lá por volta de duas da tarde para assumir um voo somente na noite do dia seguinte. Fomos todos, exceto o copiloto, que optou por seguir no dia seguinte e aguardar no aeroporto o horário do nosso voo. Nós, que fomos conforme a programação estipulada, aproveitamos o pernoite, curtimos uma piscina e, pelo menos eu, descansei bastante para efetuar o “bate-volta” na madrugada; decolagem de Manaus por volta de onze da noite com destino a Cruzeiro do Sul, Rio Branco e a volta para Manaus, também com escala em Cruzeiro do Sul. 

À noite seguimos para o aeroporto onde encontramos o copiloto que estava nos aguardando desde as seis da tarde. Ele me explicou os motivos pelo qual decidiu seguir no próprio dia e me assegurou que apesar de ter saído de casa antes do meio dia, tinha aproveitado a viagem até Manaus para descansar. Embora eu não tenha gostado daquela situação, não acreditando que ele estivesse realmente descansado para enfrentar a madrugada voando, achei melhor nada comentar para não criar um obstáculo entre nós antes mesmo do voo iniciar. E foi bom, pois a madrugada exigiu que estivéssemos afinados no trabalho em equipe.

O voo para Cruzeiro do Sul, que fica no Acre,  a 1.500 quilômetros de Manaus, seguiu tranquilo, com uma noite sem lua e por isso bastante estrelada. Na descida, em contato rádio com a torre de controle de Cruzeiro do sul, percebemos que a condição meteorológica na área do aeroporto estava se deteriorando a cada minuto que passava; um nevoeiro se adensava nas proximidades da pista de pouso. Na medida em que efetuávamos o procedimento de aproximação por instrumentos, a visibilidade e o teto iam diminuindo. Uma arremetida parecia certa. Descemos até a altitude mínima do procedimento e, não avistando a pista, iniciamos a arremetida.

Nevoeiro é complicado, não é um fenômeno que passe rapidamente, dificilmente vale à pena manter o sobrevoo da localidade e aguardar que o nevoeiro se dissipe, especialmente na região amazônica, onde os possíveis aeroportos de alternativa estão bastante afastados uns dos outros. Qualquer minuto a mais de espera é um minuto a menos que temos para voar para um aeroporto de alternativa.

Solicitamos à torre de controle de Cruzeiro do Sul o boletim meteorológico de Rio Branco e Porto Velho e, estando nublado, porém aberto para operações de pouso e ambas as localidades, optamos por seguir para Rio Branco, cuja distância (590 quilômetros) era menor.  Um trecho curto, mas que demorou a passar, enquanto constantemente monitorávamos os valores de teto e visibilidade de Rio Branco. Caso Rio Branco fechasse para as operações de pouso até o momento em que iniciaríamos o procedimento de aproximação, ainda poderíamos seguir para Porto Velho, mas se se Rio Branco fechasse após aquele momento, nosso combustível já não seria suficiente para seguirmos com segurança para Porto Velho.

Próximo a Rio Branco,  a torre de controle nos informou que nuvens baixas estavam se aproximando do aeroporto. Na década de 90, os procedimentos de aproximação em Rio Branco eram realizados com auxílio de um VOR (uma estação de rádio-navegação em solo que envia ao equipamento de bordo informações relativamente precisas quanto ao rumo para o aeroporto) ou de um NDB (outro tipo de estação de rádio-navegação que também provê informações de rumo para o aeroporto, porém com menor precisão), porém naquela noite o VOR estava inoperante, só nos restando o procedimento balizado no NDB. Tinha que dar certo, pois se arremetessemos já não haveria combustível para seguir para outra localidade; era pousar de primeira, ou de segunda, terceira... Com o avião configurado para pouso, com flapes e trem de pouso em baixo, voávamos seguindo os ponteiros erráticos que nos apontavam para a pista. Apesar do teto baixo, da visibilidade restrita e da chuva, avistamos a pista e pousamos. 

Ficamos em Rio Branco aguardando por uma melhora no tempo de Cruzeiro do Sul, até que uma hora depois o nevoeiro se dissipou. Voamos para lá e depois decolamos para Manaus. Nesta última etapa, voando em direção a um horizonte cuja claridade de um novo dia se apresentava, o cansaço veio de forma intensa. Olhei para o lado e o copiloto mal conseguia manter os olhos abertos. Sugeri a ele que fechasse os olhos por alguns minutos, mas ele, orgulhoso, disse que estava bem.  Insisti, e quando ele finalmente aceitou, fechou os olhos e dormiu profundamente.

Nestas situações, mais vale um dormindo e o outro acordado do que os dois sonolentos. Um acha que o outro está desperto e o risco é de ambos darem uma fechadinha de olhos e o avião seguir voando sozinho!

Ao iniciar a descida o copiloto acordou e pousamos em Manaus com o sol nascendo. Foi chegar no hotel e cair na cama pra se recuperar da noite sem dormir. Somente no dia seguinte voltamos para São Paulo, tranquilos, de passageiro.