Nas
programações de viagens dos tripulantes, há vezes em que devemos nos deslocar
para outra cidade na condição de passageiro, para então assumir um voo. Em
certas ocasiões, após este deslocamento, seguimos para o hotel para o pernoite
já que o voo a ser assumido é só no dia seguinte. A empresa determina qual o
voo em que devemos seguir de passageiro e de um modo geral sempre cumprimos a
programação, porém, não raro, o tripulante prefere seguir em um voo mais
tarde. Nestes casos ele assume os
riscos, pois desta forma, não há garantia de assento disponível e não há
condução para um eventual deslocamento aeroporto/hotel. O tripulante terá que
lidar com as consequências de um atraso, um cancelamento de voo ou outros
imprevistos. Ao optar por um deslocamento em um voo diferente daquele
programado pela escala, é bom pensar bem, e ter uma alternativa.
Certa vez,
quando eu era comandante de 737-200, minha tripulação seguiu para Manaus na
condição de passageiro, e fomos para o hotel, chegando lá por volta de duas da
tarde para assumir um voo somente na noite do dia seguinte. Fomos todos, exceto
o copiloto, que optou por seguir no dia seguinte e aguardar no aeroporto o
horário do nosso voo. Nós, que fomos conforme a programação estipulada,
aproveitamos o pernoite, curtimos uma piscina e, pelo menos eu, descansei
bastante para efetuar o “bate-volta” na madrugada; decolagem de Manaus por
volta de onze da noite com destino a Cruzeiro do Sul, Rio Branco e a volta para
Manaus, também com escala em Cruzeiro do Sul.
À noite
seguimos para o aeroporto onde encontramos o copiloto que estava nos aguardando
desde as seis da tarde. Ele me explicou os motivos pelo qual decidiu seguir no
próprio dia e me assegurou que apesar de ter saído de casa antes do meio dia,
tinha aproveitado a viagem até Manaus para descansar. Embora eu não tenha
gostado daquela situação, não acreditando que ele estivesse realmente
descansado para enfrentar a madrugada voando, achei melhor nada comentar para
não criar um obstáculo entre nós antes mesmo do voo iniciar. E foi bom, pois a
madrugada exigiu que estivéssemos afinados no trabalho em equipe.
O voo para
Cruzeiro do Sul, que fica no Acre, a
1.500 quilômetros de Manaus, seguiu tranquilo, com uma noite sem lua e por isso
bastante estrelada. Na descida, em contato rádio com a torre de controle de
Cruzeiro do sul, percebemos que a condição meteorológica na área do aeroporto
estava se deteriorando a cada minuto que passava; um nevoeiro se adensava nas
proximidades da pista de pouso. Na medida em que efetuávamos o procedimento de
aproximação por instrumentos, a visibilidade e o teto iam diminuindo. Uma
arremetida parecia certa. Descemos até a altitude mínima do procedimento e, não
avistando a pista, iniciamos a arremetida.
Nevoeiro é
complicado, não é um fenômeno que passe rapidamente, dificilmente vale à pena
manter o sobrevoo da localidade e aguardar que o nevoeiro se dissipe,
especialmente na região amazônica, onde os possíveis aeroportos de alternativa
estão bastante afastados uns dos outros. Qualquer minuto a mais de espera é um
minuto a menos que temos para voar para um aeroporto de alternativa.
Solicitamos à torre de controle de Cruzeiro do Sul o boletim meteorológico de Rio Branco e Porto Velho e, estando nublado, porém aberto para operações de pouso e ambas as localidades, optamos por seguir para Rio Branco, cuja distância (590 quilômetros) era menor. Um trecho curto, mas que demorou a passar, enquanto constantemente monitorávamos os valores de teto e visibilidade de Rio Branco. Caso Rio Branco fechasse para as operações de pouso até o momento em que iniciaríamos o procedimento de aproximação, ainda poderíamos seguir para Porto Velho, mas se se Rio Branco fechasse após aquele momento, nosso combustível já não seria suficiente para seguirmos com segurança para Porto Velho.
Próximo a
Rio Branco, a torre de controle nos
informou que nuvens baixas estavam se aproximando do aeroporto. Na década de
90, os procedimentos de aproximação em Rio Branco eram realizados com auxílio
de um VOR (uma estação de rádio-navegação em solo que envia ao equipamento de
bordo informações relativamente precisas quanto ao rumo para o aeroporto) ou de
um NDB (outro tipo de estação de rádio-navegação que também provê informações
de rumo para o aeroporto, porém com menor precisão), porém naquela noite o VOR
estava inoperante, só nos restando o procedimento balizado no NDB. Tinha que
dar certo, pois se arremetessemos já não haveria combustível para seguir para
outra localidade; era pousar de primeira, ou de segunda, terceira... Com o
avião configurado para pouso, com flapes e trem de pouso em baixo, voávamos
seguindo os ponteiros erráticos que nos apontavam para a pista. Apesar do teto
baixo, da visibilidade restrita e da chuva, avistamos a pista e pousamos.
Ficamos em
Rio Branco aguardando por uma melhora no tempo de Cruzeiro do Sul, até que uma
hora depois o nevoeiro se dissipou. Voamos para lá e depois decolamos para
Manaus. Nesta última etapa, voando em direção a um horizonte cuja claridade de
um novo dia se apresentava, o cansaço veio de forma intensa. Olhei para o lado
e o copiloto mal conseguia manter os olhos abertos. Sugeri a ele que fechasse
os olhos por alguns minutos, mas ele, orgulhoso, disse que estava bem. Insisti, e quando ele finalmente aceitou,
fechou os olhos e dormiu profundamente.
Nestas
situações, mais vale um dormindo e o outro acordado do que os dois sonolentos.
Um acha que o outro está desperto e o risco é de ambos darem uma fechadinha de
olhos e o avião seguir voando sozinho!
Ao iniciar a
descida o copiloto acordou e pousamos em Manaus com o sol nascendo. Foi chegar
no hotel e cair na cama pra se recuperar da noite sem dormir. Somente no dia
seguinte voltamos para São Paulo, tranquilos, de passageiro.
Descanso é fundamental, flight safety first captain. Show comandante.
ResponderExcluirAbraço
Comandante, suas historias são sempre muito interessantes e mostram um lado da aviação que poucos conhecem. Visito o blog diariamente sedento por seus nao tão freqüentes, mas sempre preciosos posts.
ResponderExcluirParabéns comandante, que venham mais estórias para todos nós nos deliciarmos! Grande Abraço!
ResponderExcluirAh.. esqueci de perguntar, já pilotou um 777 comandante? se sim, qual é a sensação?
ResponderExcluirNão tive esta chance, mas pilotei o MD-11, um avião espetacular. Um abraço, Roberto.
ExcluirBoa Comando!!!
ResponderExcluirSempre com historias magnificas e muito bem escritas!! parabéns... assim como os demais, sempre visito o blog e dou uma olhada pra ver se tem algo novo... pelo volume de historias já daria um livro, que eu compraria sem arrependimentos; fica o apelo de um leitor...
Carlos H Peroni Jr.
Esse aí nem precisou levar um puxão de orelha pra aprender a lição. Fico imaginando quantas vezes por dia essa história se repete pelos céus de todo o mundo.
ResponderExcluirJá ouvi um relato de um comissário-chefe da primeira classe, de uma empresa do oriente, que em um voo daqueles de 15 horas, non stop, certa hora entrou na cabine de comando e se deparou com os dois pilotos dormindo profundamente.
ResponderExcluirAbraços,
Walter
Caro Walter, viva o piloto automático!
ExcluirAbç, Roberto
Aqui vale a máxima: Cautela,caldo de galinha e água benta não fazem mal a ninguém,o melhor mesmo é estar na programação e descansado,nunca se sabe quando se vai enfrentar uma situação como a que vocês passaram!!
ResponderExcluirE realmente é melhor saber que se tem que estar acordado,do que dormindo por dois!!
Muito bom post comandante!!
Só uma pergunta: o NDB não seria um auxilio muito falho para uma aproximação tão complicada?
Realmente, o NDB não é o melhor auxílio para um procedimento, mas era o que tinha na ocasião. O VOR estava funcionando, porém sem o sinal auditivo em código morse, que é requerido para um monitoramento da estação. Fizemos o NDB mas de olho nas marcações do VOR, que embora não estivesse "operacional" emitia as radiais. Um abraço, Roberto.
ExcluirMagnifica historia!
ResponderExcluirBom dia comando, demorei mas voltei. Observando seu relato sobre a magnitude do MD 11 lembrei-me possivelmente da data que o lendário da varig chegou ao brasil, já naquela pintura azul escuro com branco, lindíssimo, no rio de janeiro. Estou correto? O senhor lembra quem era o comandante? Tem saudades do tempo em que era uma grande atração a chegada de um flagship desse porte ao brasil, sendo noticiado em todas as mídias de forma gloriosa? O senhor fez muitos voos de entrega? Conte as particularidades. Forte abraço comandante e aguardo o post sobre a travessia das cordilheiras.
ResponderExcluirCaro Leandro, infelizmente não efetuei nenhum desses voos de entrega, mas fiz um voo de devolução de um 737-500. A estória do cruzamento da cordilheira está "na gaveta", só preciso concluí-la. Um abraço, Roberto.
ResponderExcluirFicamos a espera de mais esse relato Comandante =D
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirhttp://www.youtube.com/watch?v=mmOfVCAvaCk&feature=g-all-u
ResponderExcluirCreio q o senhor ira gostar comandante!
Ô saudade!
ExcluirCaro Beto provavelmente já voamos juntos! Entrei na Varig em 1985, matrícula 57 mil. Voei nacional até 88, quando fui para os voos internacionais. Voei muito DC-10 e MD11 (pronto, entreguei minha idade rsrs), sendo inclusive examinadora credenciada pelo DAC desse dois equipamentos na época em que fui instrutora no antigo CTO na Ilha do Governador.
ResponderExcluirÉ sempre bom reencontrar antigos colegas!
Apareça mais no meu blog! Beijos.