domingo, 16 de junho de 2013

O cachorro e o bifinho

Na “velha” Varig o copiloto ao iniciar a carreira voava nas linhas nacionais e usava nos ombros uma divisa com duas faixas. Ao ser promovido para os voos internacionais passava à categoria de copiloto 3, recebia um adicional no salário e passava a usar divisa com 3 faixas.  Quando chegava o momento de iniciar o treinamento para ser promovido à função de comandante, o copiloto 3 voltava para os voos nacionais e  iniciava a instrução voando com um comandante instrutor. Pilotar um avião sentando no assento esquerdo ou direito é, mecanicamente falando, praticamente a mesma coisa, é como dirigir um carro na Inglaterra; nos primeiros minutos é estranho, mas a mente e o corpo logo se adaptam.

Ocupar o assento da esquerda dá ao piloto, além o controle do avião nas movimentações no solo, algumas atribuições normalmente sob responsabilidade do comandante, tais como dar a partida nos motores, o contato rádio com a manutenção e o pedido de alguns checklists.

Pois bem, esses dias eu encontrei com um colega contemporâneo de Varig e durante nosso longo bate papo relembramos as coisas que fizemos em nossa época de copiloto e que não deveríamos ter feito. Ele me contou uma estória que aconteceu com ele há quase 25 anos atrás quando ele era maduro, “pero no mucho”.

 Após voar por alguns anos como copiloto 3 nos voos internacionais ele voltou para os voos nacionais para voar ocupando o assento da direita aguardando o momento de iniciar o treinamento para a futura promoção a comandante. Como ele usava 3 faixas nos ombros era comum os comandantes acharem que ele já havia iniciado o processo de instrução e ofereciam a ele o assento da esquerda. Nestas ocasiões ele sempre dizia que ainda não era a hora, que deveria sentar no assento da direita exercendo plenamente as funções do copiloto. Mas um dia um comandante insistiu para ele efetuar o voo sentado na esquerda para que já se acostumasse à nova fase que em breve chegaria. Foi como ofertar um bifinho a um cachorro faminto!

Havia 3 comandantes que sempre deixavam ele fazer os voos na esquerda, já em ritmo de instrução. Esses 3 comandantes haviam iniciado suas carreiras na Cruzeiro do Sul, empresa que fora adquirida pela Varig,  e cujo grupo de pilotos tinham uma postura mais liberal e despreocupada. Como ele tinha 3 faixas nos ombros ninguém percebia a irregularidade, pois achavam que se tratava de um copiloto em instrução. Até que um dia algo aconteceu.

Após o pouso em Brasília, logo ao iniciar o desembarque dos passageiros, eles observaram que justamente o comandante chefe da instrução, que estava em outro avião a cerca de 200 metros de distância, ia caminhando em direção a eles. Trocaram rapidamente de assento, mas já era tarde demais. O chefe da instrução, já sabendo a resposta, perguntou a este meu colega se ele já havia iniciado a instrução para comandante e diante da resposta foi conversar com o comandante do voo. Passou uma bela descompostura nele e disse que só não iria levar o caso adiante em respeito à amizade que havia entre eles, mas que era bom ele saber que aquela ocorrência poderia bem resultar em uma demissão. Com cara de quem fez coisa errada, eles concluíram o voo até São Paulo.

Assim que ele chegou em casa  já havia uma mensagem da empresa para que no dia seguinte comparecesse no hotel onde o comandante chefe da instrução estava hospedado.  Contou o caso para sua esposa e ainda naquela noite recebeu o primeiro sermão. No dia seguinte fez a barba e foi preparado para receber o segundo sermão. Ouviu calado, aceitou a bronca, reconheceu o erro e pediu desculpas. O chefe da instrução concluiu o “sabão” dizendo que tinha certeza que o nosso amigo seria um dia promovido a comandante, mas que estivesse preparado e estudasse bastante, pois não iria ser fácil.

Durante muito tempo ele guardou certo rancor, e até receio do comandante chefe da instrução. Mas o tempo passou e ele percebeu que na verdade o comandante foi muito legal por não ter levado o caso adiante e se contentado ao chamar a atenção dele e do comandante que havia permitido a troca de assentos. Como chefe da instrução ele jamais poderia deixar de ter uma atitude após ter percebido o que eles haviam feito.

Parecia que ele tinha aprendido a lição, até que passado um tempo ele foi voar com uma daqueles três comandantes “legais”. O comandante ofereceu o assento da esquerda. Ele agradeceu, mas recusou a oferta. O comandante insistiu. Ele olhou para um lado, para o outro... E o cachorro abocanhou o bifinho!