sábado, 19 de julho de 2014

Por que hoje é sábado!

Recentemente estive em Teresina num pernoite que chamamos de “inativo”. O inativo é quando temos praticamente o dia inteiro parado em determinada cidade e neste caso, chegamos ao hotel à uma e meia da madrugada para sair do hotel às três da madrugada do outro dia.

Não foi um dia de folga, mas foi quase; acordei tarde, caminhei e fiz exercícios no calçadão ao longo do rio Poty, liguei o computador, fui ao shopping com a tripulação para almoçar e depois ainda peguei uma sessão de cinema. De volta ao hotel assisti TV, fiz um lanche e tratei de dormir cedo para poder acordar disposto para o voo de volta. Foi uma sexta feira com cara de sábado.

No dia seguinte, um sábado, ao atingir o nível de cruzeiro efetuei o speech para os passageiros, comentando que era um prazer recebe-los naquele domingo de tempo bom. Depois do pouso em São Paulo desejei aos passageiros um bom domingo. Eu estava crente que era um domingo, afinal de contas, o dia anterior havia sido muito tranquilo.  Os passageiros desembarcaram dizendo que o voo tinha sido muito bom, mas que eu estava enganado quanto ao dia, ainda era sábado. OK, eu errei o dia, mas acertei o destino! 

Fiquei com esta estória de sábado na cabeça e pensei em fazer algo diferente. Semanas depois, desta vez com certeza um sábado, decolei de Recife para o Rio de Janeiro e, num momento adequado, fiz um speech que foi mais ou menos assim:

“Senhoras e senhores, meninas e meninos, bom dia. Quem fala é o comandante e hoje vou usar o sistema de som para fazer um anúncio um pouco diferente do usual. Será baseado numa poesia de Vinicius de Moraes, que em outubro de 2013 teria completado 100 anos de idade. A poesia se chama O dia da criação, porem é mais conhecida por Por que hoje é sábado

Recém atingimos o nosso nível de cruzeiros, tendo já deixado para trás a cidade me Maceió, por que hoje é sábado.

Logo sobrevoaremos Aracaju e na sequencia Salvador, por que hoje é sábado.

Seguiremos então deixando as cidade de Ilhéus, Porto Seguro e Caravelas à esquerda até entrarmos em Minas Gerais, por que hoje é sábado.

Após sobrevoar Barbacena iniciaremos a descida com pouso previsto para a uma da tarde, por que hoje é sábado.

Vamos encontrar a cidade de Rio de Janeiro com tempo encoberto, chuvas ocasionais e temperatura de 21 graus, por que hoje é sábado.

Em rota o tempo é bom, mas para a sua segurança e minha tranquilidade, mantenham os cintos afivelados enquanto estiverem sentados. Aproveitem o serviço de bordo e tenham uma boa viajem, por que hoje é sábado!”

Na descida, já próximos do Rio de Janeiro eu fiz mais um comentário para os passageiros, por que hoje é sábado. E após o pouso agradeci a todos desejando um bom domingo, por que hoje é SÁBADO!

Sei que é muito difícil agradar a todos, mas acredito que eu consegui agradar à maioria. Eu, pelo menos, mais uma vez me diverti.


    O dia da Criação



    • Excelente esta paródia sobre aeroportos e tripulantes. Mas que fique bem claro que este Carvalho a que ele se refere, trabalha em outra empresa, não sou eu!

    sexta-feira, 13 de junho de 2014

    Os gêmeos da TV

    A aviação antes dos ataques de 11 de setembro era sem dúvida muito mais interessante, principalmente no que diz respeito a visitas à cabine. Quando eu era copiloto de Electra na Ponte Aérea, a cabine de comando frequentemente recebia visitas, seja dos próprios colegas de empresa, seja de artistas e personalidades, que ou se convidavam ou eram convidados para fazer a viagem conosco.  Já na época em que eu era copiloto de Airbus A-300, as visitas eram menos frequente, mas mesmo assim, sempre havia passageiros querendo conhecer a cabine de comando.

    Foi em 98, de volta à Ponte Aérea, desta vez no comando do Boeing 737-300 que novamente a cabine de comando ficou movimentada; toda semana eu voltava para casa com uma estória a respeito das visitas à cabine.

    Os gêmeos da Band
    Certa vez, tendo 45 minutos de espera em Congonhas entre a chegada e a saída para o Rio de Janeiro, resolvi dar uma volta pelo saguão do aeroporto e ver o movimento. Passando em frente à loja de passagens da Varig, observei uma dupla conhecida da televisão fazendo o check-in; eram os gêmeos, que apareciam num programa de televisão da Rede Bandeirantes e que faziam sucesso entre os jovens, principalmente entre as meninas. Como nesta época minha sobrinha de 12 anos estava morando com minha família e ela era uma das que adoravam aqueles irmãos, eu abordei-os pedindo um autógrafo. Eles foram simpáticos e me deram uma foto autografada. Antes de voltar para o avião para fazer mais duas etapas (SP/RJ/SP) liguei para casa e contei para minha sobrinha que tinha em mãos um autógrafo dos gêmeos. Ela que ficou excitadíssima, me implorando pra “voar” para casa. Voltei para o avião pouco antes de iniciar o embarque comentando o caso e mostrando a foto aos colegas tripulantes. Alguma coisa parecia estranha na foto, mas deixei “para lá”.

    Durante o embarque a comissária chefe de equipe veio na cabine me dizer que os gêmeos tinham embarcado e que, não sei como ou porque, ela havia comentado que o comandante do voo (eu) tinha acabado de chegar do saguão do aeroporto com o autógrafo deles. E mais; que eles queriam saber se poderiam fazer o voo na cabine de comando! Ok, chamei um deles para fazer a viagem no “jump-seat”, como é chamado o assento extra na cabine de comando.

    Jump seat do 737
    Já na descida para o Rio de Janeiro, aproveitando a noite bonita para fazer uma chegada em condições “visuais” pelo litoral eu fiz uma pergunta relacionada às gravações nos estúdios da Band, que ficam no bairro do Morumbi em São Paulo. Mas ele disse que não, que as gravações não eram feitas lá, mas realizadas em outro estúdio, em outro local. Achei estranho o programa não ser gravado nos conhecidos estúdios da Band no Morumbi e insisti nesta questão. Ele, percebendo que eu estava confuso em relação ao local de gravação, entendeu o motivo e esclareceu a situação: - Não, comandante, nós não somos os gêmeos da Band, nós somos os gêmeos do programa da Claudete Troiano!

    Os gêmeos da Gazeta
    Que confusão a minha, bem que tinha achado alguma coisa estranha naquela foto autografada. Eles não eram o Flávio e o Gustavo, os gêmeos “marombados” da Band, e sim o Maurício e o Roberto, os gêmeos que são cabelereiros e apresentavam um quadro no programa da apresentadora Claudete Troiano na TV Gazeta! Apesar de não saber onde enfiar a cara de vergonha tentei disfarçar meu embaraço dizendo que minha mulher adorava as dicas deles, o que não era verdade.

    Chegando em casa minha sobrinha estava na porta me aguardando, ou melhor, aguardando a foto autografada. Quando viu, ela quis me esganar e não parava de dizer: Tio, que mico!




    domingo, 25 de maio de 2014

    Rio Branco, ontem e hoje.

    Quando em 1989 eu passei a voar o Boeing 737-200, um dos destinos frequentes era Rio Branco, capital do Acre.  Gostava do pernoite e sempre arrumava o que fazer, até porque, a 25 anos atrás não havia internet e nem todos os hotéis possuíam TV a cabo. Ficávamos no melhor hotel da cidade, o Pinheiro Palace Hotel, que chamávamos de Pinheiro "Parece" Hotel.

    Na época em que há horário de verão, Rio Branco fica três horas mais cedo que o horário de Brasília, o que trazia algumas dificuldades para os tripulantes; se acordávamos às 8 da manhã do horário de Brasília, ainda não havia café da manhã no hotel. Se desejássemos almoçar a uma da tarde, portanto dez da manhã em Rio Branco, dificilmente encontrávamos um restaurante.  

    Certa vez, junto com o copiloto, sai para procurar um local para tomar uma cervejinha. Já era noite pelo horário de Brasília, final da tarde em Rio Branco quando nos embrenhamos num misto de área residencial, com um pouco de comércio, e uns botecos. Tudo isso sobre palafitas às margens do Rio Acre. Foi um dos locais mais estranhos em que eu já estive; cachorros maltratados passando, lá embaixo ratos circulando, e a cerveja muito gelada. Apelidei aquele local de Shopping Palafitas. Em 1997 passei a voar o 737-300 e deixei de voar para Rio branco.

    No ano passado, portanto 16 anos depois, tive um pernoite em Rio Branco. Quanta mudança! A começar pelo aeroporto, que foi desativado e um novo construído numa área mais afastada da cidade. O antigo ficava bem próximo ao centro da cidade e numa época em que só havia 2 voos por dia da Varig, era comum a decolagem ter um pequeno atraso, pois uns poucos e assíduos passageiros aguardavam o avião sobrevoar a cidade para então se dirigirem ao aeroporto, causando atraso no “fechamento do voo”.

    A cidade cresceu e melhorou bastante. As praças estão bem cuidadas e uma grande área chamada Parque da Maternidade foi criada. A margem do Rio Acre junto ao centro da cidade foi revitalizada com a construção de uma passarela ligando um lado ao outro da cidade e com a reforma do mercado onde há restaurantes botecos e comércio. E o “Shopping Palafitas” não existe mais.

    Em minha caminhada pela cidade fiz questão de visitar o Pinheiro Parece Hotel, digo, Palace Hotel. Não satisfeito fui caminhando até o local onde era o antigo aeroporto. Foi estranho caminhar pelo pátio onde por tantas vezes taxiei o 737 “Breguinha”. Onde era a pista agora é uma avenida, a torre de controle está abandonada, bem como o que antes era o aeroporto propriamente dito.

    Em meio a tantas mudanças, uma coisa continua igual em Rio Branco: a excelente qualidade do serviço de “catering”. Até 97,o responsável pelo embarque das refeições era o Seu Lima, um senhor baixinho que era só simpatia e fazia o possível e o impossível para agradar os tripulantes. Quando passávamos por Rio Branco no “voo da subida”, RG 484 São Paulo/Manaus com escalas, fazíamos nosso pedido de refeição para o voo da volta, que geralmente era um ou dois dias depois. Filé à Parmegiana, peixe, massa e outros pedidos que o Seu Lima fornecia em quantidades fartas. No voo da subida embarcava o clássico de Rio Branco; um bolinho de aipim e um quibe para cada um dos tripulantes. Bolinho é maneira de dizer, pois eles eram bem grandes e quase sempre levávamos para o hotel em Manaus para comer na hora da fome. E o bom era que eles vinham embrulhados em papel alumínio, então bastava colocar no abajur ou na arandela do quarto que o bolinho ficava incrivelmente aquecido. Coisa de tripulantes.

    O Seu Lima não trabalha mais por lá, deve ter se aposentado, mas não apenas a refeição embarcada em Rio Branco continua deliciosa, tanto na qualidade quanto na quantidade, como também a dupla de bolinhos continua a ser fornecida aos tripulantes.

    Viva Rio Branco!




























    terça-feira, 12 de novembro de 2013

    Em hibernação

    Meu Blog está hibernando.  Nestes quatro anos e meio foram  mais de 180 postagens que escrevi com muito entusiasmo. No primeiro mês foram 9 postagens e mantive uma boa média nos primeiros anos.
    Acontece que de uns tempos para cá ficou difícil escrever as estórias. Todos os dias eu penso em uma nova postagem, começo a escrever, mas não fico satisfeito com o texto, ou simplesmente o texto não flui.  Não quero postar qualquer coisa só para manter o Blog ativo.

    Observei que para um Blog ter longevidade, algumas coisas são necessárias:
    1- O administrador do Blog tenha uma equipe.
    2- O Blog se torne uma fonte de renda, e neste caso há necessidade de atualizações diárias, com “banners”,       links e outros Gadgets para tornar o Blog comercialmente viável.
    3- O blog passe a “replicar” textos e notícias de outras fontes. 
    4- O Blog perca a característica inicial e se adapte.

    Acontece que eu não quero nenhuma destas coisas. Também não desejo tornar o Blog num diário de viagem, ou ficar falando mal da administradora do aeroporto, da autoridade deste ou daquele país, ou da empresa A, G ou T. Também não quero escrever sobre “tecnicalidades”, procedimentos e principalmente assuntos “internos” da empresa. Há também estórias que eu poderia contar, mas que eu não devo postar na internet. Por exemplo: quando escrevi sobre “Os pegadores”, pensei em fazer um texto sobre “As pegadoras”, mas desisti, pois as comissárias poderiam não gostar. Há outros assuntos que também prefiro não mexer.

    O Blog tem que ser uma fonte de prazer, e não de preocupação. Então vou deixa-lo hibernando, e quando sentir que tem uma coisa legal para escrever e as ideias fluírem, eu escreverei.

    Agradeço a todos que acompanham e principalmente aos que comentam. Agradeço também aos comentários em apoio pelo falecimento da minha sogra.

    Quem sabe sem a obrigação (sim, ultimamente eu vinha me sentindo na obrigação de escrever para o Blog) e com o tempo, eu consiga escrever algo que eu curta e que seja de preferência uma estória minha.

    É isso, obrigado. 

    quarta-feira, 4 de setembro de 2013

    Botão liga/desliga

    Nove horas da noite e eu estou em Manaus, assistindo TV. Deveria estar dormindo, mas como dei uma cochilada a tarde, não consigo. A decolagem será às três da madrugada num voo para o Rio de Janeiro onde, após uma escala de uma hora, farei uma segunda etapa para Recife pousando lá às onze da manhã. Aqui, sentado na cama, fico pensando na hora em que vou cair exausto em outra cama, no hotel em Recife!

     Programar e efetivamente conseguir descansar adequadamente antes de cada voo é um verdadeiro desafio na vida de um tripulante. Os ciclos de descanso e vigília a que estamos sujeitos são muito inconstantes.

    Vejamos uma situação típica:

    O primeiro dia de uma programação começa com a decolagem no final da tarde e encerra às duas e meia da manhã. Você segue para o hotel e quem sabe consegue dormir às quatro da manhã. Os mais jovens conseguem esticar o sono até meio dia ou além. Os mais velhos (meu caso) dificilmente conseguem ir além das dez da manhã. No segundo dia a condução está marcada para as duas da madrugada então você deve dormir bem cedo. Mas quem disse que o corpo consegue? Afinal de contas, no dia anterior este era o período de vigilância! Serão 4 ou 5 dias trocando a noite pelo dia, e ao chegar em casa você está cansado, seu ciclo circadiano confuso. É necessário mais de uma folga para as coisas voltarem ao normal.

    A programação seguinte também é uma daquelas que você gostaria de ter em seu corpo um botão liga/desliga. Com decolagens entre 5 e 6 da manhã, o despertar será cedo, bem cedo. Um dia de folga e há uma nova programação, agora com voos decolando à noite. O corpo não entende; agora nada de dormir cedo, pelo contrário, a vigília terá que ser até o nascer do sol!

    Não é fácil. Cada um tem sua estratégia e a que mais funciona é aquela que diz para não deixar para depois a dormida que pode ser realizada agora! E se há a estratégia para dormir, há também para se manter desperto durante os voos: comer é algo que se pode fazer na hora que o silêncio e escuridão da cabine de comando estão fazendo seus os olhos fechar. O problema é que este método engorda. Uma solução é levar um punhado de mexerica ou outra fruta bem perfumada. Café e chá são os clássicos da madrugada e há vários métodos para se preparar um bom cafezinho. Numa destas viagens, quando o sono de um estava contagiando o outro, o copiloto me ofereceu um café passado na hora; fez um furo embaixo de um copo de plástico e com um coador de papel improvisou um filtro. Ficou ótimo o café e nos manteve desperto, pois todo este processo levou tempo.

    Ler é uma boa atividade, mas cuidado: dependendo do conteúdo a leitura poderá aumentar ainda mais o sono e por outro lado, se a leitura estiver muito boa, o nível de atenção ao voo vai cair um pouco. Vale tudo; ficar em pé, ir ao banheiro, acender a luz da cabine, conversar e até, dependendo das condições do voo (tempo bom, sem turbulência) e do seu companheiro na cabine de comando, dar um cochilo.

    O que me consola ao me ver acordado na cama, quando deveria estar dormindo, é que tem dado certo. Nestes anos todos, com ou sem o descanso apropriado, sem ter o tal do botão liga/desliga, eu chego ao final da programação achando que até que não foi tão terrível assim. Acho que é o instinto de sobrevivência.


    sábado, 3 de agosto de 2013

    Planejar, planejar e planejar.


    Um voo seguro, uma boa aproximação e um pouso preciso são consequências de um bom planejamento. Planejar é fundamental, mas como tudo na vida, há que se acertar na medida, pois tudo que acontece em excesso pode ser ruim. 

    Certa vez, voando o MD-11, fiz um voo para Europa onde a obsessão do comandante pelo planejamento tornou a rotina de trabalho desnecessariamente cansativa. Naquela noite a tripulação na cabine de comando era de 3 comandantes e um copiloto de forma que durante o longo voo de cruzeiro, enquanto uma dupla trabalhava a outra descansava. O meu turno de trabalho foi na segunda metade da viagem, a partir do sobrevoo da região da Ilha do Sal (Cabo Verde) até o pouso em Londres, quando ao meu lado ficou o Comandante do voo dividindo as tarefas na cabine. Quando há mais de um comandante na tripulação, geralmente o mais “antigo” na empresa exerce a responsabilidade pelo voo.  

    Nestas últimas cinco horas e meia de voo é feito o planejamento para a chegada; verificação periódica dos boletins meteorológicos do destino e alternativas, análise dos possíveis procedimentos de descida e pouso, monitoramento do consumo de combustível, rotas de taxi após o pouso e etc. Como o voo é longo, além de planejar dá para fazer muitas outras coisas: bater papo, comer, ler revistas e jornais, descansar, esticar as pernas, estudar e olhar a paisagem. 

    Mas a preocupação daquele comandante quanto ao planejamento era maior que tudo e por respeito ao colega, tive que acompanhá-lo. Mesmo com tempo bom em Londres, a cada meia hora ele queria uma atualização das condições meteorológicas. Mesmo com o avião consumindo menos que o previsto ele queria um cálculo para uma segunda rota alternada. Ele não parava de planejar e se prevenir de todas as maneiras. Consultava todos os manuais que traziam as particularidade das rotas a serem voadas, dos (im)prováveis aeroportos de alternativas e em seguida voltava para a atualização meteorológica.  Nem parecia que ele já havia feito aquele voo algumas vezes. Pela primeira vez em um voo para a Europa eu passei 100% do tempo planejando e “brifando” a chegada sem dar tempo para qualquer outra coisa. Pois não é que a única coisa que ele não previu aconteceu?

    Próximos a Paris, o comissário chefe de equipe nos informou que havia um passageiro passando mal. Um médico foi solicitado a prestar ajuda e após uma análise veio a séria recomendação para que um atendimento adequado fosse realizado o quanto antes, pois o passageiro em questão era um senhor que apresentava um quadro de AVC. Todo o planejamento para a chegada em Londres foi momentaneamente para a “cucuia” e numa descida às pressas, pousamos em Paris onde o passageiro, acompanhado de seu filho desembarcou em uma ambulância.

    Para concluir o voo na etapa Paris/Londres, o comandante perguntou quem gostaria de “fazer a etapa”, ou seja, ocupara os assentos de decolagem e pouso. Apressei-me em dizer que o ideal era que ele e eu continuássemos na pilotagem, afinal de contas, estávamos planejando aquela chegada em Londres havia horas. Que voo cansativo!

    Após dois dias em Londres assumimos o voo de volta. Fiz questão de optar por trabalhar junto com o copiloto e assumimos a primeira metade do voo, da decolagem até o sobrevoo da Ilha do Sal. Foi ótimo. Trabalhei, comi bem, li os jornais e revistas e descansei um pouco. Na passagem de turno dei uma piscadela para o outro comandante, que por ser mais “jovem” na empresa, assumiria o papel de copiloto para o Comandante Planejador. A piscadela queria dizer: - Será que pelo menos na volta ao Brasil a carga de trabalho vai ser menor e você vai conseguir ler o jornal?

    Depois do pouso em Guarulhos ele me contou que mesmo estando acostumados à chegada, mesmo estando o tempo bom, sem qualquer indício de nevoeiro, ele também não conseguiu relaxar em função de um constante planejamento.

    Vai voar, trabalhar ou viajar? Planeje sim, mas acerte na medida ok?

    domingo, 16 de junho de 2013

    O cachorro e o bifinho

    Na “velha” Varig o copiloto ao iniciar a carreira voava nas linhas nacionais e usava nos ombros uma divisa com duas faixas. Ao ser promovido para os voos internacionais passava à categoria de copiloto 3, recebia um adicional no salário e passava a usar divisa com 3 faixas.  Quando chegava o momento de iniciar o treinamento para ser promovido à função de comandante, o copiloto 3 voltava para os voos nacionais e  iniciava a instrução voando com um comandante instrutor. Pilotar um avião sentando no assento esquerdo ou direito é, mecanicamente falando, praticamente a mesma coisa, é como dirigir um carro na Inglaterra; nos primeiros minutos é estranho, mas a mente e o corpo logo se adaptam.

    Ocupar o assento da esquerda dá ao piloto, além o controle do avião nas movimentações no solo, algumas atribuições normalmente sob responsabilidade do comandante, tais como dar a partida nos motores, o contato rádio com a manutenção e o pedido de alguns checklists.

    Pois bem, esses dias eu encontrei com um colega contemporâneo de Varig e durante nosso longo bate papo relembramos as coisas que fizemos em nossa época de copiloto e que não deveríamos ter feito. Ele me contou uma estória que aconteceu com ele há quase 25 anos atrás quando ele era maduro, “pero no mucho”.

     Após voar por alguns anos como copiloto 3 nos voos internacionais ele voltou para os voos nacionais para voar ocupando o assento da direita aguardando o momento de iniciar o treinamento para a futura promoção a comandante. Como ele usava 3 faixas nos ombros era comum os comandantes acharem que ele já havia iniciado o processo de instrução e ofereciam a ele o assento da esquerda. Nestas ocasiões ele sempre dizia que ainda não era a hora, que deveria sentar no assento da direita exercendo plenamente as funções do copiloto. Mas um dia um comandante insistiu para ele efetuar o voo sentado na esquerda para que já se acostumasse à nova fase que em breve chegaria. Foi como ofertar um bifinho a um cachorro faminto!

    Havia 3 comandantes que sempre deixavam ele fazer os voos na esquerda, já em ritmo de instrução. Esses 3 comandantes haviam iniciado suas carreiras na Cruzeiro do Sul, empresa que fora adquirida pela Varig,  e cujo grupo de pilotos tinham uma postura mais liberal e despreocupada. Como ele tinha 3 faixas nos ombros ninguém percebia a irregularidade, pois achavam que se tratava de um copiloto em instrução. Até que um dia algo aconteceu.

    Após o pouso em Brasília, logo ao iniciar o desembarque dos passageiros, eles observaram que justamente o comandante chefe da instrução, que estava em outro avião a cerca de 200 metros de distância, ia caminhando em direção a eles. Trocaram rapidamente de assento, mas já era tarde demais. O chefe da instrução, já sabendo a resposta, perguntou a este meu colega se ele já havia iniciado a instrução para comandante e diante da resposta foi conversar com o comandante do voo. Passou uma bela descompostura nele e disse que só não iria levar o caso adiante em respeito à amizade que havia entre eles, mas que era bom ele saber que aquela ocorrência poderia bem resultar em uma demissão. Com cara de quem fez coisa errada, eles concluíram o voo até São Paulo.

    Assim que ele chegou em casa  já havia uma mensagem da empresa para que no dia seguinte comparecesse no hotel onde o comandante chefe da instrução estava hospedado.  Contou o caso para sua esposa e ainda naquela noite recebeu o primeiro sermão. No dia seguinte fez a barba e foi preparado para receber o segundo sermão. Ouviu calado, aceitou a bronca, reconheceu o erro e pediu desculpas. O chefe da instrução concluiu o “sabão” dizendo que tinha certeza que o nosso amigo seria um dia promovido a comandante, mas que estivesse preparado e estudasse bastante, pois não iria ser fácil.

    Durante muito tempo ele guardou certo rancor, e até receio do comandante chefe da instrução. Mas o tempo passou e ele percebeu que na verdade o comandante foi muito legal por não ter levado o caso adiante e se contentado ao chamar a atenção dele e do comandante que havia permitido a troca de assentos. Como chefe da instrução ele jamais poderia deixar de ter uma atitude após ter percebido o que eles haviam feito.

    Parecia que ele tinha aprendido a lição, até que passado um tempo ele foi voar com uma daqueles três comandantes “legais”. O comandante ofereceu o assento da esquerda. Ele agradeceu, mas recusou a oferta. O comandante insistiu. Ele olhou para um lado, para o outro... E o cachorro abocanhou o bifinho!



    sexta-feira, 17 de maio de 2013

    Salve Jorge!

    Em 2004 a novela do momento era Celebridade, que em sua última semana, atiçava a curiosidade de boa parte dos brasileiros com o mistério de quem havia matado o tal do Lineu Vasconcelos, personagem interpretada pelo ator Hugo Carvana.  Na noite do último capítulo eu estava decolando de Frankfurt com destino a São Paulo e junto com boa parte da tripulação, curioso para saber o desfecho do folhetim.

    Nestas travessias do Atlântico, há uma área entre Fortaleza e a Ilha do Sal onde os voos que se destinam à Europa se “encontram” com os que estão voltando ao Brasil. Usando uma frequência livre, uma frequência “ar-ar”, os pilotos trocam informações que podem ser importantes ou apenas para um breve bate papo. Aproveitei aquele momento para perguntar aos pilotos na frequência se alguém sabia quem tinha matado Lineu Vasconcelos.  A resposta veio rápida: - Foi a Cachorra! Sem demora eu informei aos comissários que a assassina era a Cachorra, apelido da personagem interpretada pela atriz Cláudia Abreu. Após o pouso dei as boas vindas aos passageiros e também a eles, revelei o mistério.

    No ano passado, no final da novela Avenida Brasil, até o Operador Nacional do Sistema Elétrico teve que manter equipes de prontidão devido a um temor de apagões de energia no horário do último capítulo. A novela estava fazendo um enorme sucesso e seriam milhões de telespectadores ligados na telinha.

    Nas últimas semanas da Avenida Brasil, quando a atriz Adriana Esteves alucinava o horário nobre e eu estava voando à noite, não deixava de  comentar sobre a novela em meus anúncios aos passageiros. Dizia que gostava de voar naquele horário quando a atmosfera costuma sem mais calma e o voo menos sujeito a turbulência, mas que, honestamente, eu preferia estar em casa acompanhando as travessuras da Carminha. Após o pouso, me despedia dos passageiros com um “oi, oi, oi”, reproduzindo o refrão da música tema da novela. Era um barato, os passageiros desembarcavam rindo e cantarolando o refrão.

    Nesta semana mais uma novela chega ao fim; Salve Jorge, que começou insossa e agora está atingindo altos índices de audiência. Desde segunda feira que, voando no final da tarde ou à noite, eu insiro o tema nos meus anúncios.  Ontem, dia do penúltimo capítulo, decolei de Navegantes/SC com destino a Congonhas num voo curto e turbulento em função de mais uma frente fria atuando sobre os estados do Paraná e São Paulo. Pousamos um pouco antes das oito da noite e a caminho do local de estacionamento do avião, fiz meus comentários “novelísticos”.

    Foi mais ou menos assim:  "Muito bem, mais uma vez bem vindos a São Paulo, um voo um pouco turbulento, é verdade, mas foi rápido e seguro. Olha, eu quero dizer para vocês que eu sou um cara que gosta de futebol, luta livre e motocross, mas tendo em casa duas filhas, além da minha mulher, acabei fisgado pela novela que está nos últimos capítulos. Agora não tem jeito, quero saber qual será o desfecho da Lívia Marini, do Russo e de toda a turma do mal. Então, para quem gosta do tema, me despeço com uma saudação especial: Salve Jorge!" A turma aplaudiu.


    Já estacionado, a comissária me chamou pelo interfone dizendo quem alguns passageiros queriam saber se “esse cara era eu”. Emendei mais um breve anúncio dizendo que apesar de ROBERTO CARvalho ser parecido com o nome do “Rei”,  eu não era o cara, e que embora eu estivesse ligado na trama da Glória Peres, eu tinha era saudade da Carminha. Foram vários os comentários positivos no desembarque, os passageiros realmente curtiram aquele momento de descontração, me cumprimentando e se despedindo com um - SALVE JORGE!

    sábado, 13 de abril de 2013

    Voo contra o relógio



    A maioria dos aeroportos comerciais funcionam  “H24”, ou seja, ininterruptamente. No entanto, alguns deles, quase sempre devido a restrições ambientais relativas a ruído no entorno, encerram as operações durante a noite. Nos voos da “velha Varig” para o exterior essas restrições dificilmente causavam problemas, pois mesmo que o voo estivesse atrasado ainda havia uma boa margem de segurança. As chegadas ao exterior eram tranquilas, uma vez que geralmente os voos pousavam pela manhã e as decolagens de lá para cá também, já que as saídas eram por volta de nove ou dez da noite e o horário de encerramento das operações nos aeroportos nunca eram antes de onze da noite.

    No Brasil, Congonhas/SP e Santos Dumont/RJ possuem restrições quanto ao horário de funcionamento, mas nem sempre foram assim. Na época do saudoso Electra que voava na Ponte Aérea, Congonhas operava sem restrições durante a noite e madrugada. Eram outros tempos e exceto numa eventualidade, não havia movimentação de pousos e decolagens após a meia noite. Mesmo assim o aeroporto estava aberto e durante anos, tomar um cafezinho na madrugada era um bom programa na noite paulistana.

    No início dos anos 90, Congonhas passou a ter as operações suspensas das 23hs às 06hs da manhã do dia seguinte, medida bastante acertada em função do nível de ruído provocado no entorno do aeroporto. Só quem mora na rota de pousos e decolagens ou nas proximidades do aeroporto sabe o que é ter que esperar o avião passar para poder ouvir alguma coisa.

    Os pilotos dos voos cujo horário de chegada era próximo do horário de encerramento das operações passaram a ter uma preocupação a mais: não permitir que um atraso comprometesse o estimado de chegada, obrigando a um desvio para Guarulhos. No período em que eu voei o 737 na Ponte Aérea, principalmente naqueles dias de chuva e fechamento momentâneo do aeroporto, era uma correria tremenda para pousarmos em São Paulo antes das onze da noite. E chegava a ser divertido também. Houve ocasiões em que pousei no Santos Dumont pouco antes das dez da noite e, com toda a equipe de terra (despachantes, descarregamento e carregamento de bagagens, mecânicos, abastecedores, limpeza e abastecimento de material de comissaria) e de voo, preparada e motivada, conseguíamos aprontar e embarcar rapidamente os passageiros de forma a decolarmos em tempo para pousar em São Paulo antes que Congonhas encerrasse as operações. Para isso era necessário que em voo “atalhássemos” a rota ao máximo possível; cada “proa direta” que o controle de tráfego aéreo autorizasse era bem vinda, cada pequeno aumento na velocidade era uma ajuda.  Decolávamos do Rio de Janeiro estimando o pouso às 23:05hs e pousávamos às 22:56hs!

    Até o começo dos anos 2.000, o horário de encerramento de Congonhas podia ser “flexibilizado” com o aval da autoridade aeronáutica. Quando necessário, o representante da empresa aérea entrava em contato com a autoridade (um Coronel da Força Aérea responsável pelo controle de tráfego de Congonhas) e a autorização era dada ao piloto. Em certas ocasiões, voando do Rio para São Paulo, tínhamos que reduzir a velocidade enquanto aguardávamos a autorização para pousarmos além das 23hs.

    Cada vez que um avião pousava após as onze da noite os moradores dos bairros em volta de Congonhas protestavam e logo conseguiram uma liminar  judicial que proibia qualquer extensão no horário de funcionamento de Congonhas. Não tinha mais “choro”, horário era horário! E quem passou a ditar a hora certa foi a Torre de Controle de Congonhas! Houve muita discussão e bate boca na fonia entre pilotos e controladores, já que por diferença de um ou dois minutos, decolagens e pousos foram negados pela Torre de Controle. Nos meses do chamado “apagão aéreo”, após o acidente com o Airbus da Tam, houve uma nova autorização para flexibilizar as operações em Congonhas; me recordo de um voo em que decolei para lá de meia noite!

    Hoje Congonhas opera com bastante rigidez. Empresas, controladores e pilotos se adaptaram, tanto é que não há voos programados para decolar depois das 22:30hs.  Neste horário, quando há um voo atrasado, as empresas estão correndo, pois sabem que não há flexibilização. Há não muito tempo atrás houve um atraso no nosso voo e o resultado foi deslocar todos os passageiros para Guarulhos. Pousar antes das 6hs da manhã também é impensável! Pela manhã, por volta de 05:50hs, já há aviões voando em espera enquanto aguardam a abertura do aeroporto.  Recentemente estávamos em espera para pouso e ouvimos na fonia a aproximação daquele que seria o primeiro pouso do dia. Olhando para o relógio, observando a posição daquele avião e calculando o momento exato do pouso, parecia que o pouso se daria um pouquinho antes das seis. Bem, mas o que vale é o relógio da Torre, que deveria ser rigorosamente sincronizado com os dos aviões através de GPS.  Observamos. Não deu outra, e em seguida ouvimos na frequência rádio que o avião em questão fora orientado a descontinuar a decolagem e entrar novamente na sequencia de aproximação.  Arremeteu por causa de menos de sessenta segundos!

    Uma semana depois eu estava como número um para o pouso em Congonhas. O controle deixou a nosso critério planejar o momento de interceptar a aproximação final, mas pedia para agilizar ao máximo possível. Fomos planejando o percurso da aproximação e controlando a velocidade para pousarmos o mais próximo das seis, mas de forma alguma antes das seis. Não foi um bom planejamento, pousamos às 06:02hs, mas foi melhor assim.


    Vejam no YouTube a discussão entre pilotos e controladores: https://www.youtube.com/watch?v=66QLGCAHBkQ