quarta-feira, 26 de outubro de 2011

TCAS sobre Uberlândia


 Aerovias são rotas pré-determinadas que, embora possam ter quase 80 quilômetros de largura, a menos que haja necessidade de desvios meteorológicos, os aviões devem voar no seu eixo. Até a uns anos atrás, duas aeronaves voando na mesma aerovia, no mesmo nível de voo e em sentidos opostos (situação que não deve ocorrer), dificilmente iriam colidir uma com a outra, pois os sistemas de navegação não davam uma precisão absoluta. A partir do momento em que o GPS passou a integrar os sistemas de navegação dos aviões, a precisão nas navegações aéreas passou a ser tão grande que o eixo de uma aerovia é exatamente o mesmo para todos os aviões, com uma margem de erro mínima. Quando em voo observamos um avião em sentido contrário, em um nível acima ou abaixo e também no eixo da aerovia, percebemos que os aviões passam “nariz com nariz”. Com uma maior precisão dos sistemas de navegação as aerovias podem ser mais estreitas, e mais aerovias podem ser criadas. Por isso tudo, o TCAS torna-se um equipamento fundamental à segurança da aviação.
Há uns anos atrás, fiz um voo de Brasília para São Paulo, uma etapa curta que eu costumo chamar de “caminho da roça” em que o TCAS mostrou sua importância.  Após deixar Brasília para trás, a rota passa perto de Caldas Novas, sobrevoa Uberlândia, Uberaba, passa na lateral de Franca, Ribeirão Preto e na descida há o sobrevoo de Araraquara, Campinas, Jundiaí e finalmente o pouso em São Paulo. Uma bela paisagem, com boa cobertura de radar, fácil comunicação com o controle de tráfego aéreo e o melhor de tudo, geralmente após pousar em São Paulo a tripulação está dispensada. Recém havia passado das oito da manhã e voávamos a 38.000 pés, um pouco acima de uma extensa camada de nuvens e próximos do sobrevoo de Uberlândia. Neste momento surgiu na tela de navegação a informação de que havia um avião se aproximando em sentido contrário e no mesmo nível de voo. Este tipo de situação acontece muito rápido e logo o TCAS já estava emitindo o aviso sonoro de “TRAFIC, TRAFIC”! O copiloto e eu, olhando para o horizonte a nossa frente, tentamos visualizar o avião que estava cada vez mais próximo.
Pelas regras de tráfego aéreo, caso duas aeronaves estejam voando uma de frente para a outra, em rota de colisão, ambas devem alterar seus rumos para a direita, assim, enquanto na frequência-rádio o controle de tráfego aéreo fazia chamadas ao avião, que naquele instante era uma ameaça ao nosso, decidi efetuar uma curva à direita. O controlador de tráfego aéreo, através da tela de seu radar, possui não apenas uma melhor visualização da posição dos aviões, mas também é capaz de projetar, à frente, o deslocamento dos voos. A outra aeronave não respondia à chamada do controle de tráfego aéreo, que então nos instruiu a efetuar uma curva imediata à esquerda, exatamente o oposto do que estávamos fazendo!  A distância entre os dois aviões estava diminuindo quando o TCAS entrou no modo de “resolução”, nos instruindo a subir imediatamente: CLIMB, CLIMB!  Desliguei o piloto automático, aumentei a potência dos motores, iniciei uma subida e liguei o luminoso de apertar os cintos de segurança, afinal de contas, o serviço de bordo estava em pleno andamento na cabine de passageiros. Meio minuto depois, quinhentos pés acima da nossa altitude original e após passar bem perto da outra aeronave, veio o esperado aviso sonoro de “CLEAR OF CONFLICT”.
Passado o susto, descobrimos que o avião que vinha de encontro a nós não estava em rumo exatamente oposto ao nosso, mas quase de frente, em uma aerovia que cruzava a nossa e seguia para Goiânia. Aerovias se cruzam a todo instante, mas somente em espaços aéreos onde os aviões voam orientados pelo controle de tráfego aéreo. Retornamos ao nível de voo original, desligamos o luminoso de apertar os cintos e seguimos em frente. Informamos ao controle de tráfego aéreo que faríamos um relatório a respeito do ocorrido, assim como o comandante do outro avião, que também teve que alterar sua altitude, deve ter feito o seu. Estes relatórios vão para o setor de segurança de voo das empresas e também para as autoridades aeronáuticas que iniciam uma investigação do caso. Além de alimentar as estatísticas, estes relatórios devem gerar procedimentos mais rigorosos e seguros para as empresas e para o sistema de controle de tráfego aéreo.
Nas reciclagens anuais em simuladores de voos os pilotos treinam estas manobras evasivas para evitar uma possível colisão, é uma manobra tranquila, mas quando acontece de verdade é uma sensação desagradável. Eu já achava o TCAS um equipamento extremamente importante, mas depois deste episódio passei a considerá-lo fundamental para a segurança da aviação, um equipamento tão importante para o avião quanto asas ou motores. Se me perguntarem se eu prefiro voar com uma falha hidráulica, elétrica, de motor, ou uma falha no TCAS, acho que eu prefiro voar com o TCAS em ordem e gerenciar a outra pane.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O TCAS e uma colisão em pleno voo

O céu é muito grande, uma colisão entre duas aeronaves é algo bastante improvável, mas infelizmente muitos acidentes já ocorreram desta maneira. A indústria aeronáutica desenvolveu o TCAS, sigla para traffic collision avoidance system, ou seja, um sistema para evitar colisão entre tráfegos e a partir da década de 90 as empresas aéreas equiparam suas aeronaves com este sistema. 

O TCAS trabalha acoplado ao transponder, que é o equipamento responsável pelo envio de sinais de posição ao controle de tráfego aéreo, assim o TCAS das aeronaves em determinada área “conversam entre si”, mostrando aos pilotos a posição e a altitude de cada um dos aviões nas proximidades. Caso dois aviões, ou tráfegos, como se diz no jargão da aviação, voando em uma rota de possível colisão se aproximarem demais um do outro (a menos de 40 segundos de um choque), no painel de navegação dos pilotos aparecerá um símbolo amarelo e um aviso sonoro soará na cabine: TRAFFIC, TRAFFIC! Os pilotos devem olhar para fora em busca de uma visualização do avião que se aproxima enquanto monitoram a situação através da tela de navegação e contatam o órgão de controle de tráfego aéreo. Se os dois aviões (ou mais, pois o TCAS pode alertar para mais de um tráfego ao mesmo tempo) se aproximarem a menos de 20 segundos de uma possível colisão o símbolo no painel de navegação torna vermelho, e o alerta sonoro na cabine deixa de ser um aviso e passa a ser uma instrução que os pilotos devem seguir imediatamente! O aviso será para que o avião suba ou desça, com maior ou menor intensidade: CLIMB, CLIMB! INCREASE DESCENT, INCREASE DESCENT! Se um avião é instruído a descer, o outro será instruído a subir. Passado o risco de colisão o TCAS emite um aviso sonoro de CLEAR OF CONFLICT, e os pilotos suspiram aliviados.

No primeiro dia de julho de 2002 aconteceu um acidente terrível na divisa da Alemanha com a Suíça. Um Tupolev-154 da Bashkirian Airlines voando de Moscou para Barcelona e um Boeing 757 cargueiro da DHL com apenas os pilotos a bordo, voando de Bruxelas para o Bahrein, estavam em rota de colisão quando o controlador de tráfego aéreo (na ocasião, efetuado pela Suiça), cinquenta segundos antes do acidente, emitiu instruções aos pilotos russos para  efetuar uma descida e assim evitar o tráfego do DHL . Acontece que em seguida o TCAS de ambas as aeronaves passou a emitir instruções aos pilotos para que efetuassem manobras evasivas em sentidos opostos. O TCAS do DHL emitia instruções para os pilotos descerem, e o TCAS do avião russo para que eles subissem. Os pilotos russos estavam com duas instruções contraditórias, a do controle de tráfego aéreo e a do TCAS! A menos de 20 segundos para uma possível colisão, não há tempo para análise da situação e os pilotos russos seguiram as instruções do controle de tráfego aéreo, o que resultou no choque. O acidente causou a morte de 71 pessoas, das quais 49 eram crianças, a maioria, russa.

As investigações descobriram que havia um relatório de uma semana antes do acidente sobre falhas do radar suíço com solicitações de reparos para atender os padrões do Eurocontrol, a agência européia responsável pelo espaço aéreo em toda a região. Além disso, no momento do acidente, a empresa que efetuava o controle de tráfego aéreo mantinha apenas um operador na central de controle em Zurique, o segundo operador estava ausente da sala se controle. Por fim, em caso de conflito de instruções, os pilotos russos estavam orientados a seguir as instruções do controle de tráfego aéreo.
Depois deste acidente todas as empresas aéreas passaram a enfatizar a seus pilotos para que além de seguirem imediatamente as instruções do TCAS,  em caso de conflito entre o TCAS e o controle de tráfego aéreo, seguir sempre o equipamento de bordo. Este acidente teve outro desdobramento: dois anos, em 2004, Vitaly Kaloyev, que perdera a mulher e dois filhos no acidente, viajou para a Suiça e tocou a campainha da casa de Peter Nielsen, o controlador de tráfego aéreo naquele fatídico dia. Assim que a porta abriu, ele disparou sua arma e matou quem ele julgava o culpado pelo acidente. Vital foi preso e em outubro de 2005 foi condenado a oito anos de prisão, que, no entanto, foi reduzida para cinco anos e três meses, pois a Corte suíça reconheceu que no momento dos fatos a capacidade de discernimento do acusado estava profundamente reduzida. O governo russo insistiu na extradição de seu cidadão e finalmente em novembro de 2007 as autoridades suíças o libertaram.