terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O MD-11

O Jumbo, Boeing 747, é sem dúvida o avião comercial mais admirado por 9 em cada 10 pilotos. O cara que o desenhou estava num dia de grande inspiração! Embora seja um projeto de 1966, com o primeiro vôo quatro anos depois, nas cores da PanAm. Até hoje ele é fabricado, evidentemente com muitos avanços e incrementos se comparado ao de 40 anos atrás, e é lindo.

Eu não tive a chance de voá-lo, e pelo visto não a terei, a menos que eu procure um emprego no exterior, possibilidade que descarto completamente. Em compensação, em 2003 quando deixei de voar o B 737-300 na Ponte Aérea, tive o prazer de voar o MD-11.

O MD-11 foi uma evolução do McDonnell Douglas DC-10, sendo iniciada sua produção em 1986 e seu vôo inaugural em 1990 com as cores da Finnair, uma empresa Finlandesa. No final de 1991, a Varig recebeu seu primeiro MD-11. Na versão que eu voei de 2003 a 2006, transportava 280 passageiros em três classes, e 16 tripulantes, podendo decolar com até 280 toneladas de peso.

Os números eram os seguintes:
Peso do MD-11 vazio: 130.000 Kg
Combustível nos tanques: 116.000 Kg
280 passageiros: 19.000 Kg
Carga e bagagens: 15.000Kg
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Peso máximo de decolagem: 280.000 Kg

Este avião possuía uma cabine de comando extremamente grande, podendo acomodar além de Comandante e Co-piloto, mais 2 ou 3 tripulantes sentados e com espaço para mais alguns em pé! Comandos elétricos para as poltronas dos pilotos, muito espaço para acomodar nossas bagagens e janelas enormes; sem dúvida foi a cabine mais agradável e confortável em que já trabalhei.

Além de um painel bastante moderno, os sistemas do avião também eram muito avançados. Cada um dos sistemas (hidráulico, elétrico, ar-condicionado, combustível e etc.) possuía 2 canais automáticos e um canal manual. É claro que deixávamos sempre no modo automático, somente tínhamos que operar o sistema no modo manual na falha de ambos os canais automáticos. Embora raro, podia haver falha no automatismo, e por isso tínhamos que conhecer bem cada um dos sistemas.

Dos sistemas, o de armazenamento, transferência e alimentação de combustível era o mais interessante. Possuía vários recursos com transferências automáticas entre os tanques, sendo que ao contrário de seu antecessor, o MD-11 possuia um tanque de combustível no profundor (a “asinha” na cauda) capaz de carregar até 6 toneladas de querosene. Com peso na cauda, é possível obter um melhor desempenho em função da melhor distribuição de peso ao longo do avião, e assim, mais economia de combustível durante o vôo, permitindo um maior alcance.

Mas esta mesma cauda que trazia benefícios ao carregar combustível, também podia trazer dificuldades aos pilotos. Diferentemente do DC-10, o profundor era menor, e isso tornava os pousos uma manobra que requeria mais atenção e cuidado. Sendo menor, e portanto com menos área exposta, dava aos pilotos menos chance de correção de trajetória quando próximo ao toque com a pista, já em velocidade de pouso. Felizmente nos 3 anos e meio em que voei o MD-11 não tive nenhuma experiência ruim durante os pousos, mas muitos pilotos já tiveram pousos do tipo “hard-landing” (aquele que de tão duro, requer uma inspeção prévia da equipe de manutenção antes de seguir para uma nova decolagem) ou ainda um “bounced-landing” quando o avião bate na pista, sobe novamente, bate mais uma vez e ou fica, ou o piloto arremete, subindo novamente para uma nova aproximação e pouso.

O MD-11 foi provavelmente o último dos grandes aviões comerciais com 3 motores a ser fabricado. O motor nº2, ou seja, o motor na cauda, trazia algumas vantagens em relação aos motores sob as asas. Estando afastado da pista, ele não ficava sujeito a ingestão de F.O.D. ou seja, “foreign object damage”, que é qualquer corpo estranho que possa estar nos pátios e pistas dos aeroportos e que possa ser ingerido pelo poder de sucção do motor. Parafusos, peças de metal, pedras, pássaros mortos são comuns, e já causaram danos graves, sendo o caso mais conhecido o do Concorde em Paris em julho de 2000.

Este motor na cauda também é um grande auxiliar nas operações em solo, pois ele pode estar funcionando e fornecendo energia elétrica, hidráulica e pneumática para o avião, sem expor o pessoal de apoio no pátio aos riscos de um motor em funcionamento.
Por outro lado, qualquer necessidade de serviço neste motor por parte da manutenção, é uma operação trabalhosa, já que o acesso a ele é difícil em função da altura.

Uma máquina que deixou saudades em uma geração de pilotos que teve o privilégio de voá-lo. Deixo para mais tarde o comentário a respeito do dia-a-dia daquela aviação de longo curso e dos locais maravilhosos que o MD-11 me levou.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Diversão virtual X Diversão real

Houve um tempo em que os tripulantes, durante os pernoites, quase não ficavam parados dentro dos quartos de hotéis. Saíamos muito, procurando novos lugares para conhecer, com passeios diferentes a cada pernoite, ou então nos reuníamos para o básico: caminhar pelo calçadão; praia; shopping center; barzinhos ou um cinema. Era raro não encontrar entre os colegas pernoitando, companhia para dar uma volta, tornando os dias longe de casa, mais agradáveis.

Claro que há ocasiões em que o cansaço é grande, e ao chegar ao hotel, a melhor coisa a fazer é cair na cama! Programações de vôos com jornadas na madrugada, dias seguidos acordando antes das 5 da manhã, poucas folgas e vôos com muitas escalas deixam qualquer um “quebrado”. Nestas horas um “room-service” pode ser a melhor pedida.

Sair para comer em restaurantes legais é uma das diversões nos pernoites, e nestas ocasiões ao convidar os colegas tripulantes, sempre vem as três perguntas básicas: 1º- O restaurante é perto a ponto de ir a pé? 2º- O prato servido é grande e dá para dividir para dois? 3º- Eles dão desconto para os tripulantes? Brincadeira à parte, a verdade é que antigamente os tripulantes eram mais unidos, procurando uns aos outros nos pernoites, pois assim o tempo passava mais rápido.

Hoje em dia, o pessoal está mais devagar! Poucos saem, e muitos ficam trancados dentro do quaro. O poder aquisitivo (salário) da categoria já não é como no passado, dormir não custa nada, assim muitos ficam reclusos, e comem qualquer coisa no quarto. É o que chamamos de “faquirar”!

De uns anos para cá, esta tendência ao marasmo por parte dos tripulantes vem aumentando, e eu não acredito que a causa seja o cansaço ou a economia de dinheiro. O vilão, em minha opinião, é o COMPUTADOR, e mais especificamente, a INTERNET!

Cada vez mais os tripulantes carregam na mala (e talvez isto seja o que de mais importante carregam) um laptop ou netbook. Então em vez de dar uma volta pela cidade, preferem ficar lidados na internet. MSN; Orkut; skype; e-mails; blogs; twitter e googles! E não é só isso, pois ainda há as opções de sexo virtual, chats, DVDs e tudo mais que a internet oferece ao alcance de um clique.

Com isso tudo as pessoas, lêem menos livros, jornais ou revistas, se exercitam menos, dormem menos, pois são capazes de passar a noite toda conectados, se divertem menos, se envolvem menos e finalmente, se conhecem menos.

Eu ainda não tenho um laptop, e a menos que alguém me dê um de presente, acho que ainda vou “sobreviver” alguns anos sem um. Internet, só em casa, quando ainda tenho que dar atenção à minha família. Tenho menos tempo para escrever minhas lembranças e histórias, mas por outro lado, nos pernoites, tenho mais tempo de viver estórias, que lá na frente serão parte de minhas lembranças.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Meu amigo Ronald Ruthner

Em 1989, um Airbus A-300 efetuou um pouso de emergência em Fortaleza, pois o trem de pouso do nariz não baixou. Este avião havia decolado sem passageiros ou carga, pois tinha um problema de manutenção e estava se deslocando para o Galeão para efetuar os serviços necessários nos hangares da Varig. Conversei com o co-piloto do vôo, (que hoje é Comandante) o meu colega Ronald Ruthner. Ele me escreveu um relato, e tomei a liberdade de dar uma pequena editada. Segue então o que aconteceu:

Naquela noite iríamos fazer o vôo 320 (Fortaleza-Rio de Janeiro, com escalas), porém fomos avisados que o Airbus prefixo PP-VND estava com uma pane, e o voo iria operar de B767. Ficamos aguardando em Fortaleza e mais tarde veio a confirmação para efetuarmos o translado do VND pra GIG.

A decolagem foi efetuada pelo Cmt Neto Júnior, e quando comandei o recolhimento do trem de pouso, ficou acesa a luz de trânsito do trem de nariz, indicando uma falha no sistema de recolhimento. Tratamos de voar o avião, recolhendo os flapes normalmente para então efetuar os checklists referentes àquela pane. Efetuamos o procedimento, que era para abaixar novamente todos os trens de pouso. Então a coisa começou a tomar forma: Os trens principais, sob as asas, abaixaram normalmente, porém o trem de nariz estava travado, não abaixava e também não recolhia! E lá foi o mecânico de vôo, o Cláudio Batista, descer para o compartimento de equipamentos eletrônicos que fica abaixo da cabine de comando. Uma escadinha dá acesso a este compartimento, e de lá é possível checar o trem de pouso através de um visor. Inesquecível a cena dele voltando: parou na subida da escadinha e falou, só com a cabeça pra fora: - Cara, a porta está aberta, dá pra ver as luzes da cidade, mas o componente principal (o “strut”, estrutura que dá resistência ao trem de pouso) está aqui dentro!!!". Então fizemos o resto do procedimento, tentando abaixar o trem com o uso de uma manivela, mas não adiantou nada!

Depois, com aquela sensação de "agora fedeu", chamamos pelo rádio a engenharia de manutenção, que nos disse que acordariam (já passava da meia noite) um engenheiro especializado no Airbus para nos ajudar. Ficamos sobrevoando Fortaleza e depois de uns 40 minutos o tal do engenheiro conversava conosco pelo rádio. De nada adiantou os apelativos G-forces, com o Cmt. Neto Jr. dando alucinantes mergulhos seguidos de subidas abruptas, ou ainda curvas de quase 90 graus.

Consumado o fato, o Neto pensou em alijar o combustível, diminuindo assim o peso e velocidade de pouso, bem como reduzindo os riscos de incêndio em caso de algo sair errado no pouso. Seguir para o Galeão não era possível pois o consumo seria muito maior , uma vez que os trens de pouso estavam em baixo (o checklist não recomendava recolher os trens remanescentes, sob pena de piorar a situação. Sugeri que deveríamos esperar o dia clarear e pousar ali mesmo, já que o tempo estava bom, não era uma situação de pouso urgente e de dia tudo seria mais fácil, tanto para o pouso como para o socorro dos bombeiros.

E ali ficamos, por mais de 4 horas esperando o dia clarear e lentamente reduzindo o peso na medida em que consumíamos o combustível. Neste tempo, conversamos muito, nos preparando para o pouso, e comentando sobre os procedimentos a serem adotados após a parada do avião ou mesmo se algo inesperado ocorresse. Também tivemos tempo para bater papo e dar risada, aliviando um pouco a tensão.

Finalmente clareou. Fizemos uma passagem baixa sobre a pista para que a torre de controle confirmasse a situação do trem e então lá fomos nós, com o mínimo de combustível, pra uma, talvez duas arremetidas.

Durante a espera, fui no banheiro dar uma drenada (n٥1) e o Batista disse: - Aproveita que pode ser a última!!! Que hora para fazer piadas!.

O pouso foi feito pelo Cmt. Neto, que, com aquela calma que era característica dele, deu um lambidasso, e lentamente o nariz foi baixando. Pouco antes do nariz do avião se chocar com a pista, com o motor em reverso máximo, cortei os motores nas manetes de combustível e foi um silêncio instantâneo. Os dois segurando o manche “full up”, e compensando o nariz até o limite de “nose up”... O nariz tocou com baixa velocidade, por volta de 60, 80 nós de velocidade, e se arrastou por uns 300m, sem muito barulho. Quando parou, abri a minha janela e olhei pra trás. Imagina a cena dos dois motores encostados na pista, girando ainda bem rápido...Não havia sinal de fogo nem fumaça. Foi então que levei um pequeno banho da espuma dos bombeiros e fechei a janela.

Resolvida a situação, nos cumprimentamos e desembarcamos calmamente pela porta dianteira, que estava quase no nível do solo, sem escada. Eu e o Batista ainda pensamos em voltar pra pegar uma garrafa de água ou outra coisa qualquer para brindarmos, afinal as galleys (as “cozinhas” do avião) estavam completamente abastecidas, mas achamos que iria pegar mal com os bombeiros e o pessoal da Infraero...

Chegamos de Kombi no terminal e parecia chegada da seleção, o terraço lotado de gente gritando e batendo palmas, a imprensa e tudo mais. O Neto deu entrevista pra tv, o pouso foi filmado e saiu no Jornal Nacional. Chegamos então no hotel aonde tinha um monte de tripulantes no café da manhã, e ligeiro a notícia se espalhou. Tomamos café, o Neto subiu pra dormir mas eu e o Claudinho...adivinha? Fomos pra praia e dê-lhe Brahma!!!

À noite, depois de dormir a tarde inteira, voltamos pro aeroporto, o pessoal da manutenção já tinha levantado o avião, baixado o trem e o estavam rebocando para pátio. Fizemos o nosso relatório para entregar para a empresa e para o D.A.C., que após certa insistência nossa, considerou o ocorrido como um incidente. Isso foi bom, pois se fosse considerado um acidente, teríamos que refazer o exame médico da Aeronáutica, arcando com o custo e o tempo perdido, e nós tínhamos acabado de revalidar o tal do exame médico.

O avião quase não estragou, apenas abriu uma pequena fenda próximo ao trem, numa área pressurizada. Parece que dois ou três dias após transladarem para o Galeão, os reparos já estavam concluídos e o avião pronto para voar com passageiros novamente. Após a investigação concluíram que a manutenção havia invertido o alinhador da bequilha (roda do nariz) após desmontagem do trem, por causa de um vazamento do amortecedor. Assim, durante o recolhimento, o dispositivo que serve pra deixar o trem bem alinhado para o recolhimento fez o trabalho inverso e o trem virado prendeu na entrada do alojamento do trem de pouso, e lá ficou.

Mas então foi isso, maiores detalhes e muitos outros "causos da aviation", de preferência ao vivo e com umas geladas pra molhar a palavra e atiçar “los recuerdos”!!!

Grande Abraço,

Ruthner



  • Nas imagens, além do A-300, o Cmt Neto Júnior (que por sinal foi meu instrutor no Airbus), e o F/E Claudio Batista. A foto do meu amigo Ronald Ruthner, eu fico devendo, assim que ele me mandar eu vou incluir.




sábado, 9 de janeiro de 2010

Na sala de aula

A cada 6 meses eu volto a ser um estudante. É quando os pilotos passam por uma reciclagem teórica em sala de aula. São 3 dias com aulas de diversas matérias relacionadas ao nosso dia-a-dia no trabalho. Regulamentos de tráfego aéreo, performance, sistemas do avião, meteorologia, transporte de carga perigosa, emergências gerais (sobrevivência na selva e no mar) e outros assuntos.


Não há muita novidade, porém uma mudança ou outra sempre ocorre de um ano para o outro. Novas regras, novos equipamentos de emergência são incorporados à frota, bem como novos procedimentos passam a ser adotados.


As aulas de sistemas do avião são muito interessantes, pois são ministradas por um engenheiro com formação em mecânica de aviões e que efetivamente trabalha nos hangares da empresa. Podemos aprofundar os conhecimentos do avião, conhecendo certos detalhes dos sistemas (hidráulico, elétrico, controle de vôo e etc.) que não estão nos manuais destinados aos pilotos, somente nos manuais específicos dos mecânicos.


Outra aula que é muito útil, e causa muita discussão é a aula de regulamentos de tráfego aéreo. Em média somos em 35 pilotos (comandantes e co-pilotos), cada um com um caso ou ocorrência para contar e pedir esclarecimentos ao professor, que é sempre um controlador de tráfego aéreo trabalhando ou em uma torre de controle, ou em controle de tráfego operando um radar de aproximação. Ele nos atualiza quanto às últimas modificações nos regulamentos, esclarece dúvidas e cita vários exemplos práticos de ocorrências. É interessante, pois podemos saber como o controlador de tráfego aéreo trabalha, quais são as suas dificuldades e o que esperam de nós, pilotos.


Durante as aulas há momentos de descontração com brincadeiras e muitas risadas. Há também aqueles colegas que não resistem, e após lutar contra o sono, acabam cochilando até que batem com a cabeça na mesa ou na parede. Em determinado momento a pressão por um intervalo fica tão grande que o professor acaba anunciando o tão esperado momento do cafezinho.
No final de cada matéria há uma prova de múltipla escolha, quando então sugerimos que ela seja feita em grupo, ou pelo menos em duplas. Mas a prova é individual, e tal como uma classe de adolescentes, há sempre um olho comprido em direção à prova do vizinho!


O índice de aprovação costuma ser de 100%, e assim esta reciclagem, que no primeiro dia parecia que ia ser tempo perdido, acaba sendo bastante proveitosa. Encontramos os colegas, batemos papo, almoçamos com os amigos e ainda por cima aprendemos.


É bom voltar à sala de aula de vez em quando.