quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O Lapinha e o Batman

Na última década, com a melhora e a estabilidade da economia no Brasil, as cidades cresceram muito. Um exemplo é a cidade de São Luiz do Maranhão, onde estive recentemente, e fiquei surpreso com a mudança. Eu não pernoitava por lá há quase 15 anos, e só conhecia a região central, além da cidade histórica de Alcântara. Desta vez eu encontrei uma outra cidade, já que o hotel em que fiquei hospedado com a tripulação fica em um área totalmente nova. Um bairro próximo à praia do Calhau, cheio de prédios novos, onde é difícil achar alguma construção com mais de 10 anos.

Belém do Pará é outra cidade que cresceu bastante e ganhou novas atrações e áreas de lazer. Mas também perdeu, pois o antológico Lapinha não existe mais! O Lapinha era um bar-restaurante-boate-casa de espetáculos onde no palco havia shows eróticos, strip-tease e até apresentações de sexo explícito. Ao contrário do que possa parecer, lá não era um ambiente de baixo nível, e embora houvesse também, não era um antro de prostituição. Era um espaço grande, frequentado por todo o tipo de gente, homens e mulheres incluindo a sociedade de Belém, empresários, políticos, turistas e tripulantes.
Era um grande programa quando os tripulantes se reuniam em turmas de seis ou mais pessoas e à noite seguiamos de taxi para o Lapinha. Na entrada havia sempre uma fila, onde nós tripulantes tínhamos entrada livre, sem pagar consumação mínima ou couvert artístico mediante a apresentação do crachá da empresa. Até um certo horário da noite a casa era um bar-restaurante comum, com música tocando e espaço para dança. A partir de certa hora todos se sentavam, pois os shows iam começar! Sempre precedido do famoso bordão - LADIES AND GENTLEMENS, (assim mesmo, com um S no final, criando um plural na palavra cavalheiros) WELCOME TO LAPINHA, IT'S WONDERFUL! - a sequência de shows eróticos começava. Depois de quinze minutos de apresentações de strip-tease, sexo explícito e outros malabarismos, havia um intervalo onde retornava o clima de bar-restaurante, para algum tempo depois subir ao palco uma nova atração.  E assim seguia pelo restante da noite. Era divertidíssimo, dávamos muitas risadas.

Para mim, ir ao Lapinha só fazia sentido se fosse em turma, incluindo obrigatoriamente as comissárias, já que ir só em grupo de homens, era virar alvo fácil das garotas de programa. Certa vez estávamos em uma mesa com cerca de dez tripulantes, quando o comandante do meu voo me deu um dinheiro para pagar a parte dele na conta e saiu discretamente acompanhado de uma mulher.  No dia seguinte perguntei a ele como havia sido a noitada. Ele se fez de desentendido até que eu fui mais específico, perguntando como tinha sido a noite com a garota que ele tinha "arrastado" e quanto tinha custado o programa. Ele disse que a moça era uma pessoa muito educada, de bem, e que não custou nada, mas que ele fez questão de pagar o taxi para ela na manhã seguinte. Êta taxi caro!  Em outra ocasião encontrei no hotel um colega, copiloto na "velha" Varig, que me convidou para ir ao Lapinha. Quando ele disse que iria acompanhado do comandante e do mecânico de voo (lembram dos"gnomos", que voavam o B 727 cargueiro?), eu recusei o convite, preferi não ir.

Ao sair do Lapinha no fim da noite, ainda havia ânimo para uma "saideira" no boteco em frente ao hotel Hilton. Situado na Praça da República, junto ao Teatro Municipal, este bar é frequentado pelos mais diversos tipos de gente, e por ter as mesas e cadeiras situadas em um terraço alguns degraus acima do bar, ganhou dos tripulantes o apelido de "Upper Deck", em alusão à cabine superior  no segundo andar do Jumbo 747.

Fui ao Lapinha umas cinco vezes e em todas elas eu cumpri com o que  combinei comigo mesmo: me comportar, voltar para o quarto sozinho, dormir e acordar sozinho! O Lapinha fechou há uns anos atrás. Dizem que uma outra boate tentou assumir a lacuna deixada, mas nunca será  a mesma coisa.

Mas e o que tem o Batman a ver com o Lapinha? Bem, esta estória eu conto na semana que vem.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Windshear

Tesoura de vento, ou windshear com é conhecido na aviação, é um fenômeno meteorológico onde há uma súbita mudança no gradiente do vento, ou seja, na velocidade e direção do vento em uma pequena região. Fortes rajadas descendentes podem afetar significativamente a performance das aeronaves que estão nas fases de decolagem e pouso quando a velocidade e a altitude são relativamente baixas. Nuvens de trovoadas com chuva podem causar “microburst e downburst”, cujas rajadas são tão intensas que podem até derrubar um avião voando próximo a área do aeroporto.

Após inúmeros acidentes aéreos nas décadas de 70 e 80, a industria aeronáutica, através da NASA, realizou um amplo estudo para conhecer uma windshear. A partir daí, foi desenvolvido equipamentos para a detecção de uma tesoura de vento e se necessário, procedimentos para que os pilotos possam voar por ela com segurança. De 1988 em diante, as aeronaves comerciais passaram a possuir equipamentos de detecção e alerta de winshear. Os equipamentos estão evoluindo com os anos, sendo que as aeronaves mais modernas não apenas detectam a presença, mas também estimam a possibilidade de haver windshear na área à frente dos aviões. Nos EUA, há equipamentos também na área do aeroporto com a finalidade de detecção de winshear. Com isso, o número de acidentes causados por este poderoso fenômeno da natureza, vem diminuindo com o passar do tempo.

Os pilotos e as empresas aéreas, sabem que este fenômeno, frequentemente associado a nuvens pesadas, chegadas de frentes frias ou correntes descendentes vindas de regiões montanhosas, não duram muito tempo, e são restritos a uma pequena área. Assim, se há reporte ou indícios de windshear em determinado aeroporto, a ação mais recomendada é aguardar 10, 15 ou 20 minutos para iniciar o procedimento de decolagem ou pouso. Após este período, as condições de windshear certamente desaparecerá.

Pois bem, a estória que e eu vou contar, aconteceu no aeroporto de Brasília.
A decolagem para Goiânia estava programada para as oito horas da noite e apesar de algumas áreas de chuva no Distrito Federal, as operações eram normais com uma boa visibilidade ainda que houvesse breves momentos de chuva leve sobre o campo. Enquanto os pousos eram realizados em uma pista, seguimos em direção a segunda pista que estava sendo usada para as decolagens. Ao sermos autorizados para a decolagem, sob uma chuva leve, alinhamos na pista efetuando as últimas verificações antes da decolagem. O sistema PWS (predictive windshear system - sistema de previsão de tesoura de vento) é ligado automaticamente ao acelerar os motores na decolagem, e faz uma varredura no segmento adiante da aeronave. Assim, com a aeronave a menos de 40 quilômetros por hora, deu-se o alerta que piloto nenhum gosta de ouvir:. – WINDSHEAR, WINDSHEAR! Além do aviso sonoro vindo dos alto-falantes da cabine, há também um a indicação visual no painel de instrumentos dos pilotos. Imediamente interrompemos a corrida de decolagem, que mal havíamos iniciado. Ficamos surpresos com o alerta, mas verificando a apresentação do radar meteorológico, dava para ver que havia uma grande nuvem de tempestade a cerca de oito milhas à frente da pista. Saímos da pista e informamos à torre de controle que devido ao alerta de WS iríamos aguardar a melhoria das condições antes de uma “nova” decolagem. Nestas situações, cabe aos pilotos decidirem se aceitam ou não a decolagem, a torre de controle apenas informa a situação, até porque naquela noite, os pousos transcorriam normalmente na outra pista que é paralela e separada por apenas 1500 metros de distância.

Neste instante, uma aeronave de outra companhia estava taxiando em direção a cabeceira da pista para decolagem. Apesar de ser informada que nós havíamos interrompido a corrida devido ao alerta de tesoura de vento, e que outro Boeing se encontrava próximo à cabeceira em uso aguardando a melhoria das condições, o comandante disse que tinha condições e solicitava autorização para a decolagem. Alinhou o avião na pista e iniciou a corrida. Instantes de suspense, já que sendo aquele avião também dotado sistema PWS, a probabilidade de soar o alerta e ele também interromper a decolagem era enorme. Correu por cerca de meio minuto, e então ouvímos o ruído dos motores em máxima aceleração reversa quando a corrida foi interrompida! Decolagens abortadas em baixas velocidades são manobras simples, mas quando realizadas em altas velocidades, não apenas exige rapidez de ação por parte dos pilotos, com também causa certo susto aos passageiros. Após livrar a pista em uso, ela seguiu para também aguardar a melhoria das condições meteorológicas.

Mais uma aeronave, agora de uma terceira companhia, saía do pátio principal e também foi informada pela torre de controle sobre a situação. O comandante não quis nem saber e disse que se os outros comandantes não queria decolar era problema deles, mas que ele tinha o direito e desejava prosseguir para a cabeceira em uso. Quanto arrojo, quanta valentia! Este avião, um pouco menos moderno, não era equipado com um sistema que prevê, ainda no solo, a possibilidade de haver uma windshear, mas apenas o equipamento que percebe o fenômeno ocorrendo de fato, com a aeronave em voo. Enquanto o avião seguia para a cabeceira, um gracejo na fonia pode ser ouvido: Macho, macho man! O avião decolou e sequer os pilotos deram qualquer informação sobre as condições encontradas. Pode não ter ocorrido nada, pode ter tido apenas uma turbulência leve ou moderada, ou mesmo um encontro com a tesoura de vento. Não ficamos sabendo.

O comandante do avião à nossa frente, o número um na sequência de decolagem, pediu para aguardar mais uns minutos antes de decolar. O comandante do avião atrás de nós, aquele que interrompera a decolagem em alta velocidade, solicitou instruções para taxiar de volta ao terminal, já que tendo consumido uma quantidade significativa de combustível em sua manobra, necessitava de um reabastecimento de querosene. Porém a torre de controle instrui-o a manter a posição, pois com aviões à frente e à retaguarda, ele teria que aguardar, aprendendo assim, o que todo piloto já deveria saber: que em condições de windshear, não de deve decolar ou pousar, e sim aguardar. Eu, durante todo este tempo, procurei manter os passageiros informados, explicando a eles que devido a ventos com mudanças bruscas de direção e intensidade, nosso equipamento de bordo havia detectado e informado uma condição não segura para a decolagem.

Alguns minutos depois o Boeing adiante de nós decolou, transmitindo a informação de condições normais em voo. Como a nossa interrupção de decolagem havia sido feita em baixíssima velocidade, não houve um consumo signifiticativo, então solicitamos autorização de decolagem. Pousamos em Goiânia com meia hora de atraso, mas apesar da demora, foi um voo tranqüilo, sem surpresas, como deve ser.

domingo, 19 de setembro de 2010

A volta ao trabalho

Depois de mais de 30 dias sem entrar na cabine de um avião, é hora de voltar ao trabalho. Não me incomodaria se as férias fossem extendidas por mais um mês, mas já que não é possível, tenho que abrir o armário de uniformes, pegar a velha mala de voo e pensar em voltar à rotina. Olho a escala de voos e já penso nos que fazer nos pernoites que terei até o final do mês. Dá uma preguiça danada, mas a verdade é que é gostoso voltar ao trabalho! Caminhar pelo saguão de Congonhas, rever os colegas de aviação e, ao procurar saber das novidades, constatar que nada mudou durante as minhas férias. 

Minha volta ao trabalho foi um voo bastante símples, apenas um bate-volta de Congonhas para Belo Horizonte. Embora não seja uma exigência da autoridade aeronáutica, muitas empresas têm como norma que o comandante ao regressar  das férias faça o primeiro voo acompanhado de um outro comandante, o que é chamado de voo de readaptação. Se o período afastado foi de apenas trinta dias, basta uma etapa para que e a readaptação seja cumprida. 

Sentar na cabine de comando, efetuar os cheques pré-voo, analisar os boletins meteorológicos, verificar a navegação, separar as cartas dos procedimentos de saída e chegada, saudar os passsageiros, enfim toda àquela rotina que venho fazendo há 25 anos flui tão naturalmente que nem parece que estive sem voar por um mês. Decolar de Congonhas em noite de tempo bom é sempre um prazer! Durante a corrida sobre a pista, ainda que esteja bastante concentrado, há espaço para curtir a sensação de novamente estar pilotando um avião fantástico, com passageiros e tripulantes cujas vidas estão depositadas nas mãos dos pilotos. Foi uma viagem tranquila onde pude conhecer mais um colega de profissão, o outro comandante, que me contou um pouco da sua origem, sua trajetória na aviação e sua dificuldade para voltar para sua casa em Florianópolis.

A chegada no aeroporto de Confins não foi aquele pouso "manteiga" como os pilotos gostam de fazer, mas também não foi ruim,  apenas normal. Para a etapa de volta, descobrimos que um outro comandante, também regressando de férias, me substituiria para realizar a sua readaptação. Meu "árduo" trabalho estava encerrado, e com um cartão de embarque regressei a São Paulo na condição de passageiro. Em pouco menos de uma hora de voo, só deu tempo para ler mais umas páginas do meu livro, ver o céu estrelado pela janela do avião e tentar tirar um breve cochilo.

Não dá para dizer que voltei para casa cansado, mas juro que já estou pensando nas próximas férias! 

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Pilotos "Made in Brazil"

Estima-se em quatrocentos o número de pilotos brasileiros que atualmente estão trabalhando em empresas estrangeiras. Destes, a maioria é oriunda da "velha" Varig e foram voar lá fora, principalmente após o final da empresa em julho de 2006. Hoje os pilotos brasileiros estão espalhados pelo mundo e trabalham nas mais variadas empresas de aviação.

Esta é uma situação nova, pois até o ano 2.000 era raro encontrar um piloto brasileiro voando no exterior. Me lembro que um dos primeiros pilotos da Varig a pedir demissão e ir para uma empresa estrangeira foi o comandante Magalhães, que em 1988 foi voar na Transavia, uma empresa holandesa. Naquela época parecia uma loucura um piloto abandonar a carreira na Varig para tentar a sorte "lá fora", afinal, voar e seguir carreira na Varig era talvez o melhor emprego que a aviação brasileira podia oferecer . A cada dois ou três anos ficávamos sabendo de mais um colega que seguia o caminho do comandante Magalhães.

No final da década de 90, em um momento de retração do tráfego da Varig quando licenças não remuneradas estavam sendo oferecidas aos pilotos, houve um pequeno grupo que também foi voar na Transavia. Um destes colegas foi o Cmt Alberton, meu colega de turma desde a época em que voamos juntos na Rio Sul. Cheguei a cogitar a possibilidade de também me mandar para a Holanda, mas justamente naquele momento eu tinha conseguido uma vaga para voar no grupo da Ponte Aérea, fato que iria facilitar muito a vida minha e da minha mulher, já que nosso segundo filho havia nascido a menos de um ano atrás.

Alguns anos depois, com a Varig já mergulhada em crise, mais pilotos cruzaram o oceano em busca de um emprego mais estável. Foi um momento em que os pilotos da Varig, através da APVAR (Associação de Pilotos da Varig), estavam lutando para de alguma forma mudar o rumo no qual a administração da empresa estava seguindo. Em resposta às ações da APVAR, a empresa demitiu vários pilotos, que não demoraram para se empregarem no exterior. Com a crise se agravando nos anos seguintes, muitos não esperaram para ver o que iria acontecer. Quando a "velha" Varig finalmente encerrou as operações, a quantidade de pilotos desempregados foi muito grande, mas felizmente a aviação mundial, principalmente em países do Oriente Médio e Ásia, estava crescendo e foi capaz de absorver muitos profissionais. Alguns não se adaptaram à vida lá fora e voltaram para o Brasil, outros ainda estão por ir. Uns foram com a família inteira, outros foram sozinhos e periodicamente conseguem um bloco de folgas ou mesmo férias para vir para o Brasil.

Hoje é possível encontrar ex-pilotos da Varig em diversas empresas aéreas espalhadas pelo mundo. Korean Airlines, ANA-All Nippon Airways, Shenszhen Airlines, Singapore Airlines, Jade Cargo, Condor, Euro Atlantic, Ryanair, Jet Airways, Emirates, Qatar Airways e Taag são algumas destas empresas.

Um destes colegas que está voando no exterior é o comandante Moraes. Fomos colegas na época em que voamos o 737 e também voamos juntos na Ponte Aérea. O comandante Moraes me contou que muitos destes pilotos conseguem ter suas escalas de vôo condensadas de forma a obterem cerca de quinze dias de folga consecutivos, geralmente a cada dois mêses, para então vir ao Brasil.  Alguns colegas, por causa do trabalho da mulher, da escola ou da faculdade dos filhos, bem como por diversos outros motivos, optaram por manter suas famílias no Brasil, adotando esse ritmo de vida peculiar que, diga-se de passagem, é muito sacrificante. Imagine o que é morar no Brasil e voar para empresas cuja base fica na Coréia do Sul ou na China. A cada 60 dias estes pilotos têm que, literalmente, cruzar meio mundo para voltar ao lar. Tendo em conta que eles gastam dois dias para chegar ao Brasil e outros dois dias para retornarem às suas bases, resta-lhes apenas pouco mais de uma semana para o convívio familiar. Muito pouco, né?

Contudo, algumas empresas facilitam bastante a vida destes colegas ao programarem suas escalas de modo a permitir que eles terminem e comecem suas programações a partir da Europa, diminuindo significativamente o tempo de viagem. Outra coisa que torna esse estilo de vida bastante estressante é o fato de que esses deslocamentos são normalmente feitos na condição de GC (ou ID 90, que são aquelas passagens super baratas para funcionários, mas cujo embarque não é garantido), o que significa que eles só viajam se houver lugar disponível no vôo. Infelizmente, não são assim tão raras as vezes que eles perdem um dos seus raros dias de folga por conta do voo estar lotado. Nesses casos, a alternativa é encarar um vôo de 12 horas "confortavelmente" sentado em um "jump seat" ao lado do banheiro do avião. E isso tudo sem falar nas demais dificuldades que fazem parte da vida de um expatriado, que é ser um estrangeiro em países com cultura muito diferente da nossa.

Admiro muito estes colegas que estão lá fora. Quando estou em Guarulhos e vejo um Boeing 777 da Quatar Airways ou da Emirates,  sempre imagino que no cockpit daquele avião pode estar um ex-colega da saudosa Varig.

sábado, 4 de setembro de 2010

Os que moram na mala

A aviação comercial, por proporcionar passes de viagens e passagens com desconto, permite que seus tripulantes optem por morar bastante longe de suas bases de trabalho. Principalmente quando voando nas rotas internacionais, e portanto com menos viagens por mês, pilotos e comissários se sentem encorajados a morar em suas cidades de origem ao invés de fixar residência em São Paulo ou Rio de Janeiro, por exemplo. Com isso há colegas morando nos cantos mais improváveis, quando se pensa que o local de trabalho é Congonhas ou Guarulhos.

Há quem more, ou pelo menos tente morar, em Fortaleza, Belém, Recife e Salvador. Minha mulher tem uma colega que consegue morar em Buenos Aires! Em Porto Alegre e Curitiba há uma quantidade inacreditável de tripulantes que estão sempre vindo para São Paulo para assumir programação de voos e em seguida tentando retornar para suas casas. Digo tentando, porque os passes de viagens dos tripulantes só dão direito ao embarque se houver disponibilidade de assentos. Na área do Rio de Janeiro (incluindo Niteroi, Petrópolis e Teresópolis) há uma verdadeira "base fantasma", tamanha é a quantidade de tripulantes que se recusam a deixar a "Cidade Maravilhosa", já que com o fim da "velha Varig" a base Rio foi extinta. As empresas não fazem objeção  ao fato do tripulante morar onde quer que seja, desde que ele se apresente no local e horário previsto.

Quando eu entrei na Varig, poucos eram os que moravam fora de São Paulo ou Rio de Janeiro. Naquela época, até completar um ano de "casa" os passes eram limitados a um por mês, então o jeito era escolher entre SP ou RJ e fixar residência. Com o tempo a política de concessão de passes e passagens foi ficando mais liberal e um verdadeiro êxodo ocorreu em direção a outras cidades. Florianópolis foi uma das cidades que acolheu dezenas de tripulantes, sejam eles de lá mesmo ou de outras cidades. Belo Horizonte também tem uma legião de tripulantes que lá moram.

Estas pessoas que moram fora se sentem felizes por residir onde desejam. Estão perto dos familiares, próximo aos amigos, da família do marido ou da mulher, moram em frente a praia, num rancho junto à mata, em cidades do interior, em casas grandes confortáveis, enfim, conseguem ter uma boa vida e principalmente, proporcionar à suas famílias uma qualidade de vida que não teriam em São Paulo. Em compensação, não é fácil para eles estes deslocamentos de/para São Paulo. Além de depender de vagas nos voos, ficam a mercê das condições meteorológicas dos aeroportos, eventuais problemas de manutenção, caos aeroportuário e outros contratempos. No regresso a suas casas após uma programação, atrasos e imprevistos são chatos, mas não são tão estressantes. O problema é quando o tripulante está se deslocando para São Paulo com a finalidade de assumir voo, com horário a cumprir,  por isso um bom planejamento é essencial. O tripulante precisa ter em mente quais são as opções de voos do dia, e nunca deixar para pegar o último. Deve levar em consideração se é domingo ou final de feriado, bem como se haverá nevoeiro na área do aeroporto. Além disso há a questão da senioriodade e antiguidade na empresa, já que quando resta poucos assentos no avião, é ela quem determina a prioridade para embarque. Em primeiro lugar os comandantes, depois os copilotos e finalmente os comissários, sendo que entre o mesmo grupo, leva a melhor quem tiver mais tempo de casa naquela função. Assim, é comum o copiloto novinho e principalmente o comissário novinho, "sobrar" e ter que tentar embarcar no próximo voo.

Todo este pessoal que mora longe e depende de voos para vir à São Paulo, frequentemente precisam pernoitar por aqui. Há um grande grupo que não possui local fixo para ficar, e assim, ficam em um hotel próximo a Guarulhos ou a Congonhas. Um outro grande grupo divide um apartamento com outros colegas que vivem a mesma situação. Sempre próximo ao aeroporto, estes apartamentos podem ser compartilhados por vários tripulantes, que na verdade quase não se encontram, pois eles ficam muito pouco por aqui já que estão sempre arranjando um jeito de voltar para suas casas. Que tal oito pessoas dividindo uma "kitnet" de trinta metros quadrados? Por fim há os que não ficam em hoteis e também não dividem apartamento com ninguém. Estes, ficam no aeroporto e quando necessitam de um sono podem optar por um cochilo em confortáveis poltronas localizadas em uma sala de descanso nas dependências da empresa ou ainda no "Fast Sleep". O Fast Sleep é uma espécie de mini hotel dentro do terminal de passageiros do aeroporto de Guarulhos, com acomodações pequenas, limpas e silenciosas,  providas ou não de banheiro privativo em que a cobrança é por hora. Então é comum que os tripulantes descansem por períodos de cinco ou quatro horas durante as madrugadas.

Eu não acho que este esquema de morar em outra cidade seja bom, não funcionaria para mim. Mas eles gostam e juram que assim conseguem ter uma qualidade de vida melhor. Há um colega que mora em Toledo/PR, que fica a 160 quilômetros de Foz do Iguaçu. Ao desembarcar em Foz ele pega pelo menos mais duas horas de estrada para chegar em casa. Ele diz que vale a pena, já que toda a família dele e da esposa são de lá. A mulher dele tem um bom emprego e a sogra ajuda na criação dos filhos. Ele consegue ir para a casa a cada dez ou quinze dias. Uma outra colega, copiloto da empresa,  mora em Curitiba. Tudo bem, Curitiba é perto, porém há o problema constante do nevoeiro na região do aeroporto Afonso Pena, além disso, ela voa preferencialmente na escala bate-volta saindo e chegando de São Paulo, pois possui filhos pequenos e para complicar um pouco mais, o marido dela também é copiloto e portanto vive fora de casa. Que vida é essa?

Ultimamente tenho visto uma movimentação em ambos os sentidos por parte de alguns colegas. Alguns que por anos moravam em São Paulo, decidiram voltar para suas cidades de origem e hoje estão em Porto Alegre, Campo Grande ou Brasília. Outros, cansados de "viver na mala", estão fazendo o inverso e se mudando de vez para São Paulo com o intuito de se adaptar e tentar tornar a vida mais fácil. Sei que a vida em São Paulo não é simples, seja pelo custo de vida, violência, trânsito infernal e outros tantos fatores. Mas me sinto um felizardo por ter toda a minha família aqui e principalmente, por gostar de morar nesta cidade tão complicada.