segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Aviação comercial ou humanitária?

Este episódio ocorreu pouco tempo depois, em meus primeiros anos como comandante no 737-200.

A programação era de quatro etapas, saindo de Manaus para Tabatinga e fazendo escala em Tefé, tanto na ida quanto na volta. Em Tabatinga havia um passageiro enfermo que deveria embarcar com destino a Manaus, na hora me lembrei do episódio anterior, portanto procurei saber se havia um atestado médico e qual era a real condição do passageiro. Apresentado o atestado e estando ele acompanhado de parentes, liberei o embarque.

Acontece que o passageiro em questão era um cara grande, com aproximadamente 1,85m e seguramente mais de 100 quilos. Ele tinha que ser embarcado em uma maca pois não tinha condições de ficar em pé, e também tinha soro sendo ministrado. Com muito esforço o pessoal em Tabatinga conseguiu subir a maca para dentro do avião pela porta traseira e uma nova dificuldade surgiu: A maca não conseguia fazer a curva para que ele se acomodasse na cabine de passageiros! A Varig sempre disponibilizou um serviço de transporte de passageiros em macas; quando por ocasião da reserva da passagem, o passageiro informava a necessidade, pagava as taxas extras e equipe da manutenção montava uma maca nas últimas fileiras do avião. Para isso, a antepara que divide a cabine de passageiros da parte traseira do avião era desmontada, justamente para que a maca fizesse a curva, e utilizando as duas últimas fileiras de poltronas (seis poltronas no total), a maca era devidamente fixada, podendo o acompanhante se sentar ao lado do "paciente", tendo um local adequado para fixar o recipiente com o soro e de forma que as máscaras de oxigênio pudessem ser usadas em caso de necessidade.

Porém, neste caso específico, este agendamento prévio não havia sido feito. A maca "aeronáutica" não estava lá, e mesmo que a antepara fosse desmontada, não havia como o passageiro ficar seguro. Ao indagar se ele não poderia viajar acomodado em três poltronas, me foi dito que não, que ele não podia se levantar e nem mesmo carregarem ele pois ele estava muito mal. A solução seria ele simplesmente viajar deitado na maca em que estava,"acomodado" no piso da "galley" traseira da aeronave. Eu teria que avaliar os riscos que isso poderia trazer ao voo, ao próprio passageiro e aos demais ocupantes do avião.

Embora muito improvável, há sempre a possibilidade de uma interrupção de decolagem, e neste caso, com o passageiro "solto" no chão da galley, não seria nada bom para ele. Da mesma maneira, em caso de turbulência, ele poderia ter seu estado de saúde ainda mais agravado. Outra possibilidade, ainda que remota, era ocorrer uma situação de despressurização em que as máscaras de oxigênio não alcançariam uma pessoa deitada no chão. Finalmente, nas operações de pouso há sempre um risco de freada brusca ou algo além que possa resultar numa evacuação de emergência, onde as rotas de fuga devem estar livres e desobstruidas. Para complicar um pouco, o voo até Manaus não era direto, pois ainda teria uma escala em Tefé. Não seria justo dar às comissárias que viajavam na traseira do avião a responsabilidade de cuidar daquele passageiro, que viajando alí, não só atrapalharia o serviço delas mas também poderia colocá-las em situação de risco.

Com todos os demais passageiros embarcados, já com alguns minutos atrasados e diante da impossibilidade de acomodar o passageiro com um mínimo de segurança, eu disse que não seria possível levá-lo. Com mais uma dose de esforço o pessoal desceu ele pela escada traseira e seguimos viagem. Não houve problemas na decolagem, nem turbulência, nem despressurização e os pousos foram macios.

Em Manaus eu conversei com o pessoal da empresa, explicando a situação e consultando a possibilidade de adaptar a maca no próximo voo para Tabatinga (o voo era em dias alternados). No hotel, conversei com a minha mulher pelo telefone, fui contando o caso, até que ela me perguntou: - Você levou, não levou? Eu não levei, e naquela noite eu não dormi direito, preocupado com a situação daquele homem.

Na manhã seguinte voei para Belém, e dois dias depois estava de volta à Manaus. Para o meu alívio, fui informado que um dia depois de eu ter recusado o passageiro, um avião da FAB, devidamente equipado para o transporte de passageiros enfermos e acidentados, foi deslocado para Tabatinga para levar aquele passageiro para Manaus. Chegando em casa, depois de ouvir toda a estória, minha mulher compreendeu a situação, concordando com a minha decisão.

Até hoje eu às vezes me pego lembrando daquele voo. Embora a Varig em sua história já tenha se desviado várias vezes de seu fim comercial, prestando ajuda a milhares de brasileiros no Brasil e no exterior, não cabia a ela (ou as demais empresas aéreas), o serviço humanitário.

Me pergunto até que ponto nós podemos ou devemos nos desviar de regras e protocolos, atrasar nossas viagens e compromissos e assumir responsabilidades em função de uma vida?


16 comentários:

  1. Realmente Cmte. escolha difícil. Diante do procedimento disponível pela CIA e não seguido pelo passageiro, acredito que sua decisão foi mais que acertada. Fazer de tudo para ajudar, tudo bem. Mas desrespeitar o regulamento, só se não colocar os envolvidos em risco.

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  2. Prezado Comandante, passei a ler seu blog depois de vê-lo citado no blog do Lito, o qual descobri pela aerovirtual, e gostaria de agradece-lo pelas boas leituras que tenho feito no seu blog. Para um advogado, que sonhava em ser piloto, ler seu blog é uma terapia reconfortante da frustração de não ter a sua profissão. Apesar do status da aviação brasileira ser diferente das épocas em que a antiga varig voava, vejo na sua pessoa, aquela figura do comandante "herói" que toda criança queria ser quando crescer.
    Coincidência ou não, acho que já voei com o comandante (como passageiro) em maio deste ano, voltando de confins/curitiba ou na perna curitiba/florianópolis (periodo noturno). Pode ter sido apenas um devaneio, porém a sua figura me é familiar.
    Portanto, fica aqui meu agradecimento, e os parabéns pelo seu blog, e que este tenha vida longa.

    Bons voos.

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  3. Realmente ás vezes escolhas difíceis devem ser feitas nessa profissão. E mesmo a decisão nesse caso tendo sido certa ainda parece que não foi o ideal...

    Abraços!

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  4. Luciano Semprebom, a escolha de carreira dos meus filhos eles é quem vão decidir. Se um deles desejarem seguir a carreira de piloto, vou achar legal, mas eu acho que prefiro que meles sigam uma carreira "tradicional". Não acho que eles vão seguir para a aviação, pois até agora nenhum deles mostrou um interesse maior, e acho que eles tem uma percepção que a aviação já foi uma boa opção de carreira no passado, e que hoje em dia, o salário é menor, a responsabilidade e cobrança são bem maiores que antigamente. Os anos dirão se eles vão ou não seguir a aviação. Quanto ao trabalho de comissário(a), acho que é um ótimo emprego, mas uma péssima carreira. Explico: O salário inicial, incluindo diárias de alimentação pode chegar a 3 mil reais, mas este é também o salário final, mesmo após anos de trabalho.

    André, acho que vc realmente foi meu passageiro.

    Abçs, Roberto.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Roberto, realmente o mundo é feito de coincidências, recentemente comentando sobre seu blog com uma amiga muito querida ex-comissária da Varig, tive a grata surpresa (e ela também) de descobrir que vocês se conhecem. O Nome dela é Beth, e ela me falou que é muito amiga de você e da sua esposa, mas que infelizmente a vidas corrida os afastou. Ela morava em Cruzeiro e hoje mora em Volta Redonda-RJ. Ela ficou bastante animada com a possibilidade de que eu entrasse em contato com você e para que ela tenha notícias. Recado dado, aproveito a oportunidade de parabenizar pelo blog, as histórias realmente nos fazem viajar para um mundo que só quem é apaixonado por aviação pode entender. Um grande abraço. Fabrício Zambroni

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  7. A questão comandante, é a responsabilidade que se assumi ao transgredir uma norma. Se tudo sair bem e o vôo for tranquilo, você é o herói, se houver uma rejeição de decolagem e o passageiro se machucar ou vier a óbito, você é o vilão. Vão dizer que o passageiro só morreu, por que o comandante desrespeitou as normas de segurança. Sua decisão foi acertada, infelizmente eu faria o mesmo.

    Ah, e compartilho da opinião do André: uso seu blog como uma terapia reconfortante da frustração de não poder ter seguido a sua profissão.

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  8. Cmte decisao dificil essa, é complicado
    quando na verdade queremos fazer algo mas
    que nesse caso tinham normas a serem seguidas,
    mais uma vez parabens pelos relatos no seu blog,
    como sempre excelentes ate pra mim que ainda tou no berço do estudo pra aviacao.Cmte mandei um e-mail para o Sr. espero que tenha lido.
    abraço
    Leandro Pinheiro

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  9. Caro Fabrício Zambra, Não apenas eu conheço a Beth, como foi ela que fez o papel de "cupido" entre eu e minha mulher. O ano éra 1989 e num voo para Fortaleza de A-300 ela era uma das comissárias do voo junto com minha mulher, que eu não conhecia até então. A Beth eu já conhecia de outros voos, e junto com a tripulação fomos a praia e passamos o dia juntos. Fiz um "aproach" na minha mulher, que poderia não ter gostado, mas a Beth que era amiga dela disse que eu era legal. Depois no RJ. saí com a Beth mais uma galera e a minha mulher, que me deu uma chance, e uns dias depois engatamos um namoro. Grande Beth...

    Leandro, recebi e respondi seu e-mail em que vc perguntava da escala de voo. Aliás, por falar em escala, este fim e começo de mês, foi uma bagunça geral.

    Mariel, até o fim da semana vou postar o último texto da "série" Levar ou não levar, eis a questão.

    Abçs Roberto.

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  10. Parabéns pela decisão Cmte, as vezes a sua decisão por mais cruel que ela pareça para outras pessoas pode ter salvo a vida daquela pessoa, pois ele estar mau era só um detalhe visível ele poderia estar muito pior e não aguentar, e com toda certeza no final ia sobrar para você, um comandante da webjet me disse outro dia, "A bunda de plantão sempre é a do Cmte."

    PS: Cmte semana que vem vou fazer meu CEMAL, estou bem ansioso.

    Abraços

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  11. Vinícius, vai tranquilo, leve uma ou duas revistas, tenha paciência (enquanto aguarda sua vez em cada um dos exames) e depois me diga como foi. Abç, Roberto.

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  12. Comandante eu e creio que os demais amigos do blog gostaríamos de ter um relato seu de como se comporta um co-piloto nos primeiros voos, como é liberar o manche e o throttle na mão de um co-piloto pela primeira vez, outra duvida na hora do pouso como é divido cada aeroporto um pousa de cada vez (co-piloto e comandante), o sr mesmo chegou a se estressar com algum copila.

    Ederson

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  13. Parabéns pelo blog Comandante! As histórias são bem interessantes e envolventes! Continue nos brindando com mais "causos". Um abraço ! E a propósito como foi o frio de Curitiba? Rs

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  14. Obrigado pela dica Cmte, tenho umas revistas de mulher pelada aqui, vou levar, vai que faço amizade com os examinadores e ai já viu hahaha, (brincadeira pessoal!)

    Boa pergunta Ederson, eu estava pensando nisso essa semana, como será a primeira vez de um copila na cabine de um 37?

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  15. Olha só comandante esse pouso fantástico do cmte. Telmo no 737, na época na Gol:

    http://www.youtube.com/watch?v=gyzKJA889rw

    Ele gira a base quase em cima da pista e ainda pousa manteiga e perfeitamente alinhado. Incrível o domínio do cara sobre a máquina.

    Um abraço.

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  16. Putz, esse vídeo do cpt. Telmo é fodástico, o cara termina a curva em cima da pista, né pra qualquer um não.

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