segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A escala

A escala de voos é um setor fundamental no dia a dia das empresas aéreas. Vinte quatro horas por dia, 365 dias ao ano, há uma turma de funcionários de olho nas programações de voos dos tripulantes, efetuando os ajustes necessários para que os voos possam sair com a tripulação adequada. Dentro da escala há dois grupos distintos: o pessoal do planejamento e o pessoal da execução.

 O primeiro grupo cuida da elaboração da escala mensal dos tripulantes. Não é um trabalho fácil, pois mesmo com programas de computador para este planejamento, as variáveis são muitas, e há certos detalhes que programa nenhum consegue prever. Por exemplo, solicitações de tripulantes que pedem para ter as manhãs de terças e quintas feiras livres (era este o meu caso quando voava na Ponte Aérea da "velha Varig), ou folga para as quartas feiras em função de determinado curso. Esta turma elabora as "chaves" de voos, procurando atender às solicitações de voos e folgas que são feitas pelos tripulantes e ainda cuidando para que os cursos teóricos, simuladores de voo e demais reciclagens periódicas sejam feitas com a devida antecedência. No final de cada mês a escala deve estar pronta, e a partir desta data um novo trabalho se inicia, visando o mês seguinte.

O segundo grupo é a turma da execução. Também não é um trabalho fácil já que eles trabalham em "tempo real" com os acontecimentos, tendo que estar atentos à eventual falta de tripulante em qualquer um dos voos diários da empresa, além de garantir que haja tripulantes disponíveis em reservas e sobreavisos. Nos dias em que a aviação está "enrolada" devido a fechamento de aeroportos, cancelamento de voos por motivos de manutenção ou outros fatores, a sala onde o pessoal da execução da escala trabalha fica uma verdadeira loucura. Várias pessoas falando ao mesmo tempo, telefonemas para demais setores da empresa para atualização de informações e principalmente o remanejamento de tripulantes para efetuarem as programações. Neste momento outras variáveis entram na pauta: um tripulante que não pode efetuar tal voo com pernoite pois está de folga no dia seguinte, ou a comissária que está na "escala mãe", ou seja,  ao regressar ao trabalho após o período de amamentação, as comissárias, por um tempo, só fazem programações bate-volta  com jornada de trabalho inferior a oito horas por dia. O voo tem que sair, cabe à escala deslocar tripulantes para isso. No final do expediente, o pessoal da execução vai para casa bastante cansado.

Para o tripulante, a relação com a "escala" é uma relação de amor e ódio! Há fases em que amamos a galera da escala, que elaborou uma programação boa, ou que atendeu perfeitamente às solicitações feitas. Em compensação, há dias em que se pudéssemos, esganávamos todos os escaladores que passassem pela nossa frente! A escala mexe não apenas com nossa vida diária, mas também com os nossos "bolsos", já que a remuneração está ligada à quantidade e principalmente a qualidade das horas voadas em cada mês. Quando eu falo em qualidade da hora de voo, quero dizer que o voo noturno paga um adicional maior na remuneração que a hora diurna, assim como o voo em domingos e feriados também pagam um adicional melhor. Portanto, o voo que proporciona o melhor pagamento de horas extra, é o voo de domingo ou feriado noturno. Trabalhar vinte horas de "domingo noturno" por mês, equivale a sessenta horas diurnas de voo!  Quando a escala de trabalho finalmente é divulgada, eu passo um bom tempo olhando para aquela tirinha de papel, analisando como será o meu mês seguinte. Quais dias terei de folga? Vou voar mais por Congonhas ou Guarulhos? Poderei ir à festa de aniversário de fulano? E o show de rock`n roll, será que vai dar para ir? Neste momento surge nitidamente a relação de amor e ódio que comentei.

Na "velha Varig" (e tenho a impressão que em todas as empresas de aviação) havia sempre um pequeno grupo de tripulantes que mantinham "relações suspeitas" com a turma da escala. Invariavelmente estes tripulantes faziam os melhores voo e todos os meses acabavam tendo uma remuneração bem acima da média. Dizia-se que eles jogavam futebol com a turma da escala, faziam churrascos e que havia uma constante troca de favores. Diante das reclamações da maioria, de tempos em tempos surgia a figura do "fiscal de escala", que era um comandante que acompanhava de perto o trabalho da escala. Não adiantava muito, pois o fato é que sempre houve e sempre vai haver os tripulantes que se mostram mais disponíveis e flexíveis, e queira ou não, eles acabam se beneficiando desta postura.

E o ponto que eu acho muito interessante comentar é a eventual carga emocional a que o pessoal da execução da escala está submetido. É muito comum os tripulantes ligarem para a escala pedindo uma alteração na programação devido a problemas particulares. Uma necessidade de levar filho ao médico, ou mesmo ao pronto socorro, uma solicitação para sair de determinado voo devido a doença grave de algum familiar ou outros pedidos do gênero. Antigamente, antes do telefone celular estar acessível a todos e com ampla cobertura de sinal no país todo, o único meio de um tripulante ser localizado pelo seu familiar era através de um telefonema para a escala. Desta forma, ao sair para voar, muitos tripulantes deixavam em suas casas um papel com os números de telefone da escala para o caso de necessidade. Quantas vezes a escala já não recebeu telefonemas de mães a procura de seus filhos, para dar uma notícia ruim? Ou filhos tentando achar seus pais para informar o falecimento de um avô ou um acidente grave em casa? Em 1999 eu estava em Fortaleza quando a escala me ligou pedindo que entrasse em contato com minha residência. Minha avó tinha falecido. Ao voltar de Fortaleza, minha programação que deveria seguir até Florianópolis, foi encerrada em São Paulo, sendo um outro colega acionado em meu lugar.

Hoje em dia, com o celular, qualquer tripulante fica localizável por seus parentes, portanto a escala não mais funciona como um elo entre os tripulantes e seus familiares. Ainda assim, é bem possível que o número de telefone da escala de voos ainda esteja, junto com outros números importantes, afixado na geladeira da casa de muitos tripulantes.

10 comentários:

  1. Super interessante Carvalho!

    Desejo a tí boas escalas.

    Abraço

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  2. Suas explicações, muito claras e objetivas, mataram minha curiosidade. Muitas vezes me vi pensando no quebra-cabeça que devia ser a programação de uma escala. Meus agradecimentos, Comandante.

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  3. É isso ae comando. Não tenho tido muito tempo para comentar seus post's, mas garanto que leio todos. São um meio de imaginar como será minha vida daqui algum tempo. Tendo em vista que estou já fazendo as horas de meu PP em Londrina. Tenho voado o C150 PT-BKU, se vem em LDB já deve ter visto ele por aqui... Abração
    Thiago Czigler

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  4. Por eu pretender (e FATO que com determinação consiguirei) a carreira de Aeronauta, ou piloto como alguns preferem, sempre tive tais duvidas sobre as famosas escalas e como sempre suas estórias fantasticas ajudou bastante. Agora tenho uma certa "curiosidade" que nao sei se poderá reponder. Caso ja tenha sido (bem la no começo) piloto de executivas ou taxi aéreo qual você prefere em questões de Carga Horária e remuneração?
    Abraços.

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  5. Passando em Londrina, vou ficar de olho.

    Brendon, eu não voei nem na executiva nem taxi aéreo. Acho que a carga horária de taxi aéreo e bem maior, e provavelmente vc vai voar muito mais horas por ano. Creio que a executiva paga melhor. Dentro das duas opções, certamente há vários patrões e estilos diferentes. Abç, Roberto.

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  6. É realmente é algo que só com o tempo quando já tiver dentro da aviação que poderei decidir, mas de qualquer maneira muito obrigado aee.
    Abraços e Bons Voos!

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  7. Prezado Comandante Beto: Novamente nossos parabéns pelas belas postagens, as quais tomamos a liberdade de reproduzir em nosso blog.
    Desculpando-nos da indelicadeza inicial, informo que estamos veiculando o endereço de seu blog junto às nossas postagens!
    Agradecemos a gentileza e nos colocamos à sua inteira disposição.

    jcflores
    http://taiada-blog.blogspot.com
    taiadablog@gmail.com

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  8. Grande Carvalhinho!

    Muito bom o seu blog. Certamente, você é um dos que realmente merece a nota 6 em português. Parabéns!

    Para quem está fora da terrinha, que é o meu caso, ler os seus "posts" nos faz lembrar os bons tempos da aviação, bem como nos permite ver como andam as coisas por aí. Muito interessante mesmo.

    As fotos da chegada ao SDU estão muito bonitas, dando bastante saudades dos tempos de Ponte Aérea. Éramos felizes e sabíamos...

    Outro dia eu encontrei o Cláudio Batista em Dhaka, Bangladesh, onde tivemos um pernoite no mesmo hotel. Tomei a liberdade de mandar aquela história de Fortaleza para ele, na qual há uma foto dele bem novinho. O tempo passa, né?

    Bom, o blog é seu e, por isso, não pretendo me estender muito. Assim, quero apenas deixar um grande abraço e dizer que passarei a te "visitar" com mais freqüência.

    Cheers,


    Moraes

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  9. Parabéns mais uma vez por suas postagens!!!
    E aí comandante? Na sua escala, quando finalmente fará um pernoite aqui em Foz? Não esqueça de avisar, pois já li um comentários seus aqui e no blog do Lito que gostaria de conhecer Itaipu.
    Já lhe convidei várias vezes!!!
    Estamos a disposição aqui.
    Abraço
    Sergio

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  10. Minha mãe conta um episodio que ocorreu com meu pai que era flight da Varig no inicio dos anos sessenta.
    Ele havia acabado de chegar da Europa, muito cansado tomou um banho, vestiu o pijama para dormir quando tocam a campainha de casa.
    Era o funcionario da escala convocando meu pai a retornar ao aeroporto pois iria fazer parte de tripulação que iria levar um avião a Europa naquela mesma madrugada !
    (segundo minha mãe como nesta época não tinhamos telefone em casa, ou ficava-se de plantão no aeroporto ou a Kombi da Varig aparecia para te pegar em casa.
    Ainda segundo ela, no mes de dezembro daquele ano ele dormiu em casa apenas uma unica noite).
    Abs.,
    Marcus

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