quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Descensos e demissões

Na administração de uma empresa aérea, metas e perspectivas de crescimento devem ser cuidadosamente analisadas, pois um tripulante não se forma do dia para a noite, é preciso tempo para o treinamento e altos investimentos. No caso de pilotos (comandantes e copilotos) o tempo necessário para tê-los na cabine de comando, prontos para compor uma tripulação, é ainda maior. O departamento de ensino da empresa deve estar atento à necessidade futura da malha aérea, por isso, muitas vezes o quadro de tripulantes pode ficar temporariamente inchado até que a demanda apareça. Empresa crescendo é sinônimo de contratações e promoções de tripulantes e consequentemente um momento favorável
.
Acontece que nem sempre as metas de crescimento se dão como planejado, e neste caso o excesso de tripulantes se torna um problema para a empresa. Então surgem as demissões e os “descensos”, que é como chamamos os remanejamentos para os aviões e cargos anteriores. Os últimos funcionários a serem admitidos são dispensados, o comissário que havia sido promovido a chefe de equipe volta a ser auxiliar, o tripulante que saiu dos voos nacionais para os internacionais também volta para sua rota de origem. Evidentemente, diante deste quadro, é melhor um descenso que uma demissão, mas de qualquer forma, o grupo de tripulantes passa a voar com certa dose de desanimo e apreensão.
A aviação é cíclica, há os períodos de alta e de baixa, em minha carreira  já passei por dois descensos. Em ambos os casos eu voava como comandante nas linhas intercontinentais e voltei para o quadro de comandante de voos nacionais.

Certa vez, em um distante país, uma empresa de aviação estudou o mercado e previu um grande crescimento para os anos seguintes. Como não é possível esperar a necessidade para iniciar contratações e promoções, ela iniciou o processo e muitos novos comissários e pilotos foram admitidos e iniciaram o treinamento. Os copilotos mais antigos na empresa observavam atentamente seus números na lista de futuras promoções e faziam contas para ver quando seriam os novos comandantes. Foi um período de euforia, todo mês um novo grupo de copilotos era promovido a comandante, as salas de treinamento e simuladores de voo estavam lotados e os pilotos instrutores recebendo uma remuneração extra devido ao processo de instrução. Bons tempos.

Mas algo deu errado. Talvez aquele país não tenha crescido conforme as expectativas, talvez a empresa tenha sido muito otimista quanto ao mercado ou talvez tenha sido apenas uma mudança nas estratégias dos administradores. O fato é que havia um excedente de tripulantes e o fantasma da demissão e do “descenso” apareceu para todos os funcionários. Na hora da demissão é difícil falar de critérios justos; há famílias envolvidas, casos particulares, sonhos, planos e  ninguém quer ser alvo do “facão”.

Os mais de duzentos comandantes que haviam sido promovidos nos últimos tempos ficaram apreensivos. Os últimos comandantes a serem admitidos também, bem como os copilotos que recém haviam terminado o processo de treinamento, que em alguns casos durou quase um ano inteiro de grande dedicação. Os antigos comandantes (com mais de 60 anos de idade) ou que recebiam algum tipo de complementação salarial em função de aposentadoria se sentiram na “mira do tiro”. Foram meses de apreensão até que a empresa anunciasse a tal da lista dos demitidos.

Quando finalmente foi anunciada a lista e o critério para demissão, uns ficaram aliviados e outros surpresos por serem demitidos. Os comandantes novos na função ficaram, os mais antigos e experientes “dançaram”. Os novos comandantes foram promovidos por desejo da empresa, e apesar de terem pouca experiência na função de comandante, eram altamente capazes e com uma longa vida útil. Por outro lado, a empresa dispensar dezenas de pilotos com 17 a 35 anos de experiência como comandante, foi dificílimo. Foi um período tenso, ninguém merecia ser demitido. Para dificultar as coisas, o próprio mercado da aviação naquele país estava retraído, as empresas não estavam contratando. Uns procuraram seus antigos patrões, outros procuraram emprego em outros países e uns poucos se aposentaram definitivamente.

A aviação é assim, bons e maus momentos, por isso é bom aproveitar os voos, os pernoites e as oportunidades que aparecem no dia a dia do trabalho. Hoje tem, amanhã, quem sabe?



10 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Belo texto comandante, até imagino que pais seja este...

    Realmente esta coisa de demitir os experientes, é algo inusitado, tem até acordos de sindicatos que tentam coibir esta pratica, mas nada é perfeito.

    mas contudo uma pergunta me veio a cabeça, e na manutenção?
    O "Facão" também faz estragos?

    Abraço
    Carlos Peroni

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    1. Caro Carlos Peroni, nestas situações, infelizmente, há cortes em todos os setores. O estrago é grande. Uma pena. Abç, Roberto.

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  3. É assim pra todo mundo um dia ri outro chora,agora realmente é uma pena ver tanta experiencia sendo jogada fora!!Na China (China Airlines) a algum tempo atras na ansia de contratar puserarm tripulações inexperientes na cabine de 747 e o resultado foram dois acidentes medonhos!!Por isso é preciso pesar bem e ver onde o tal facão vai bater porque senão corre-se o risco de cortar na propria carne....

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  4. Caro Cmte Beto,

    Leio o post desejando que este último relato não se refira ao Brasil (nem ao atual corte de tripulantes de uma grande empresa aérea...). Além da condição das pessoas que trabalham e foram atingidas pelas demissões e descensos, ainda há um fantasma que pulula na minha cabeça quando vejo uma história dessas: vem acidente aéreo por aí.

    Como um viajante frequente, e amante da aviação espero que isto não ocorra... mas sempre que se abre mão da excelência em prol do lucro, dá zica.

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  5. Fico impressionado como o Brasil é uma fábrica de empresas aéreas falidas ou em dificuldades financeiras graves. Na história recente de países desenvolvidos, tivemos empresas em situações delicadas, mas elas conseguiram se reerguer (United, por exemplo). Aqui no Brasil não. Todas as grandes de outrora se vaporizaram e as grandes de hoje, ou não são mais brasileiras ou estão na pindaíba. Não consigo deixar de imaginar que nossa carga tributária, o custo absurdo do combustível (um dos mais caros do mundo, assim como são nossos carros, equipamentos eletrônicos, etc.) e a absoluta falta de investimento na infra-estrutura de aeroportos e afins tenha ligação umbilical com todas essas quebras e dificuldades. A meu ver é impossível que todos os administradores de empresas aéreas no Brasil sejam incompetentes. Enquanto isso, no velho mundo, temos empresas centenárias voando com saude, segurança e qualidade de vida para seus funcionários. E no Brasil? Ah, o carnaval aqui é bom e as praias são bonitas.

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  6. O Brasil peca sim. Mas não acredito que seja exclusivamente a culpa do País. Assim como em um desastre aéreo, o fatores envolvidos na desestabilização de uma empresa são muitos(inclusive sim e a má administração dos dirigentes das empresas). Se não me engano, o próprio Beto já falou em um comentário aqui: "Marilia quebrará em 7 anos." (já foram 2). Ela tem 35 anos e passou por momementos difíceis da economia e ainda está viva. Não quero defender ninguém, longe disso - tanto é que tenho na minha cabeça que existiu troca de influencias nisso, como ocorre em qualquer outra. O que quero dizer é: Quem quer manter viva uma empresa, mantem; faz de tudo para deixá-la viva. A Varig, se não me engano era assim - apesar de ser a toda-toda sobreviveu porque era feita de pilotos e eles queriam voar. A Transbrasil quebrou porque não pensaram todos, mas só na direção. Entendem o que que eu digo?

    Agora, quando a direção pensa somente em dinheiro e lucro, nao sobra ninguém mesmo...

    Sei lá, foi um desabafo isso, e não sei se tenho como provar meus argumentos..

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  7. Tá geral, em todos os ramos e setores! É a vida.

    Abraço.

    Fabio.

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  8. A Gol demitiu para se capitalizar, para valer mais quando se abrir o mercado de vez para as estrangeiras. Por esse mesmo motivo ela vem diminuindo até o volume da "água" dos banheiros nos voos de até uma hora, vendendo milhas e cobrando por assento vazios em alguns voos full pax. Ela quer virar a Ryanair brasileira para ter liquidez. Até desfez a parceria com AA para não ter vínculo quando as cartas forem postas na mesa. Os erros de projeção existem, mas infelizmente os fatores nem sempre são os mais simples ou lógicos.

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  9. Essa é a próxima a ir pro vinagre, já está ladeira abaixo...

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