sábado, 15 de maio de 2010

Tumulto a bordo

Sempre houve na aviação passageiros inconvenientes, e eles são de todas as classes sociais; portanto, viajam na econômica, executiva ou primeira classe. Há muitos anos atrás, quando ainda era permitido visitar a cabine, ocorreu um caso na Varig em um voo regressando da Itália. Uma passageira, ao visitar a cabine de comando, descarregou um gás de pimenta. Foi uma confusão e os pilotos iniciaram uma descida de emergência para pousar nas Ilhas Canárias. A dupla de pilotos que estava descansando, acordou sobressaltada e correu para a cabine de comando para ajudar a dupla atacada. Foi o copiloto, lutador de Jiu-Jitsu, que conseguiu imobilizar a passageira. Na verdade, era "o" passageiro, pois se tratava de um travesti, que foi devidamente desembarcado após o pouso. Mais recentemente houve uma confusão em um voo para a Europa, protagonizada por um conhecido ator, e os pilotos pousaram em Belém para desembarcá-lo. O prejuízo e o transtorno que um pouso não programado causa é enorme!

Os motivos que levam pessoas a se comportarem tão mal a ponto de causar uma confusão são muitos. Pode ser por medo de avião, insegurança, estresse após um longo período confinado numa cabine lotada, combinação de remédios e bebidas alcoólicas, mas, principalmente, por intolerância e falta de educação. Uma criança chorando, um passageiro chutando a poltrona da frente ou um simples mal entendido entre duas pessoas podem ser o estopim para uma grande confusão, por isso, faz parte do treinamento dos comissários de bordo aprender a contornar e administrar os conflitos, e se necessário, conter e imobilizar os passageiros. Técnicas extraídas do Jiu-Jitsu, Krav Magá e outras "artes", aliadas ao uso de faixas de contenção, algemas e tiras plásticas, podem ser usadas pela tripulação. Antigamente, o próprio comandante do voo podia intervir diretamente nestes episódios, e isto costumava surtir efeito, porém depois de setembro de 2001, os pilotos não devem sair da cabine, especialmente se há confusão a bordo. Em algumas empresas estrangeiras viaja um policial entre os passageiros, é o "air marshall", que pode ajudar a tripulação, caso necessário. Imobilizar um passageiro é uma ação extrema, e só deve ser realizada após fracassar as tentativas de acalmar o "insurgente", quando então, mantendo o contato com a equipe de comissários, o comandante autoriza a contenção. Antes dos comissários partirem para a "ação", eles devem ler para o passageiro a ser contido uma declaração oficial, que diz que de acordo com os poderes conferidos ao comandante por certos regulamentos internacionais, e em nome da segurança e bem estar de todos, a partir daquele momento os tripulantes poderão tomar as medidas necessárias para restabelecer a ordem, e que ele poderá ter que responder a um inquérito policial e processo legal. Neste momento, quase sempre o passageiro se dá conta da gravidade da situação, se acalma e não causa mais problemas.

Tive poucas experiências em que a situação tenha saído do controle da tripulação. Uma delas aconteceu há muito tempo em um voo do Rio de Janeiro para Brasília com escala em Belo Horizonte. Já na primeira etapa, as comissárias que estavam trabalhando na parte traseira do avião me informaram que havia dois passageiros que, mesmo depois de alertados para pararem, continuavam insistindo em um comportamento inadequado. Sentados lado a lado, separados apenas pelo corredor, eles ficavam colocando o braço para propositadamente esbarrar no corpo das comissárias sempre que elas passassem, além de falar "gracinhas" entre eles, mas com o claro intuito de que elas ouvissem. Pedi para o comissário chefe de equipe informar a eles, que se não parassem imediatamente com aquele comportamento, seriam desembarcados em Belo Horizonte, acompanhados da Polícia Federal. Eles não deram ouvidos ao alerta, assim, ainda em voo, solicitamos a presença da polícia por ocasião da nossa escala em B.H. Lá chegando, conversei com os agentes da polícia, que desembarcaram ambos os passageiros. Eles ficaram na ponte de embarque conversando com os policiais, e disseram que eram funcionários da Receita Federal, e que após chegar a Brasília, ainda seguiriam viagem para Boa Vista, pois tinham um trabalho importante e não poderiam viajar no dia seguinte. Disseram que estavam arrependidos, e pediam para que eu, por favor, aceitasse o pedido de desculpas. Eu respondi que aceitava sim o pedido de desculpas, mas que não voltaria atrás em minha decisão, eles que pensassem melhor na próxima vez antes de se comportar inadequadamente. Fechamos as portas e o voo seguiu sem problemas.

Quando o voo é curto, fica mais fácil lidar com certas situações, pois em pouco tempo estamos chegando ao destino. Num voo longo, pode ser mais complicado gerenciar tais conflitos, e por isso, o jogo de cintura da tripulação é fundamental. Em 2004, voando MD-11 de São Paulo para Los Angeles, surgiu uma destas situações em que calma e paciência foram necessárias para que um pequeno conflito não tomasse uma proporção enorme. O voo era com tripulação de revezamento e na primeira metade da viagem o comandante "Master" estava descansando junto com um dos copilotos, enquanto eu e o outro copiloto trabalhávamos tranquilos na cabine de comando. Aproximadamente 3 horas após a decolagem, a comissária chefe de equipe me comunicou que havia uma passageira que estava muito nervosa e causando problemas. Ela disse que a passageira, brasileira, estava em pé no corredor do avião, se recusando a sentar e com isto atrapalhava o serviço de bordo, já que, bloqueando o corredor, a tripulação não conseguia seguir com o carrinho de bebidas e comidas. Pedi à comissária para novamente conversar com a passageira, usando o jogo de cintura que ela certamente deveria ter. Alguns minutos se passaram e a chefe de equipe disse que a situação estava se agravando e que achava melhor partir para a contenção e imobilização da passageira! Imagine o transtorno que seria pousar em Manaus para desembarcar a passageira, ou ainda, mantê-la imobilizada por horas e desembarcá-la nos EUA sob custódia da polícia norte-americana! Para uma decisão desta, seria necessário acordar o outro comandante, que afinal, era o responsável legal pelo voo. Pedi mais uns minutos para pensar, e enquanto isso conversei com um dos comissários do voo, meu conhecido de "outros carnavais". Disse a ele que me parecia haver certa intransigência por parte não apenas da passageira, mas também das comissárias envolvidas no conflito. Não usei estas palavras, mas aquilo me parecia "picuinha de mulheres". Pedi para ele avaliar se realmente a situação era tão grave. Minutos depois o conflito estava solucionado, a passageira sentada e a tripulação trabalhando normalmente. Mais tarde, depois de chegar em Los Angeles, aquele comissário me disse que realmente a passageira estava sendo intransigente, mas que também as comissárias envolvidas diretamente no "entrevero" também não estavam ajudando, e ele, com educação, mas também sendo assertivo e firme, resolveu o conflito.

Apesar de a tripulação ter o treinamento e  amparo legal, imobilizar um passageiro é sempre uma ação delicada e que só deve ser realizada em casos extremos.

9 comentários:

  1. Paulo Gurgel Sobrinho15 de maio de 2010 às 16:08

    Excelentes relatos comandante. Suas histórias renderiam um bom livro, daqueles de ser ler 100 páginas no mesmo dia, de tanto que "prende" a nossa atenção.

    Realmente seu blog é um achado pra mim, todos os dias entro pra ver se tem coisa nova. Obrigado por compartilhar conosco.

    Por falar em comandante, o famoso comandante Carlos Dantas, que participou algumas vezes do Programa Voar com o Edgard Mello Filho, ainda está na Gol? O sr. tem notícias dele? Adorava os programas com ele.

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  2. Paulo Gurgel Sobrinho15 de maio de 2010 às 16:11

    Ah, esqueci de dizer, o cmte. Carlos Dantas aparece nesse vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=PrC-v6MKefE&feature=related

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  3. Comandante seu post tem tudo a ver com este video, olhem o que o comandante da tam falou para os passageiros, realmente o comandante tem poder para mandar alguem para a policia federal, olhem o video

    http://www.youtube.com/watch?v=jxEJ4Id_cwA

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  4. Lidar com pessoas sempre é complicado,se não há compreensão de parte a parte mais ainda.
    Agora a milhares de pés de altitude sem ter como chamar os "home" deve ser realmente complicado!!
    Li certa vez que algumas pessoas podem realmente ter seu comportamento social alterado,pensando que por estar fora do mundo "real"(pés no chão)começam a se sentir onipotentes,e acima de qualquer regulamento,tenho impressão que as comissarias são as que mais sofrem com os gracejos incovenientes de certos passageiros "alegres"!
    Muito elucidativo o post Comandante!!

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  5. Uma vez tive uma aula de sabedoria com uma estagiária de nível médio. Ao entrar na área restrita de uma instituição financeira da qual eu era advogado, visualizaei em uma mesa uma pilha de folhas e documentos a frente desta estagiária, então lhe falei:
    - Nossa, que trabalhão você vai ter hein! Deve ser difícil organizar tudo isso. Ela de pronto me respondeu:
    - Prefiro lidar com papéis do que gente.
    Aquilo ficou na minha memória e vejo que o maior desafio do ser humano é lidar não só com outros semelhantes, mas consigo mesmo.
    Em 1985 estava em um voo da pioneira de GRU para Foz, tinha 12 anos na época, me recordo que os comissários tiveram muito trabalho com um suíco que estava embriagado por conta das bebidas alcóolicas que ingeriu durante o voo, que eram liberadas na época. Me lembro que um comissário sentou-se ao lado dele até o avião pousar e depois o desembarcaram por último, o cara acabou apagando antes do voo de tão embriagado que estava.
    Abraço cmte. continue nos alimentando com os "causos" da aviação.
    Jose Brito
    Foz-PR

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  6. Libera aí o "causo" causado pelo global, vai?
    Não precisa dar o nome...

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  7. Olá Paulo, o nome Carlos Dantas me soa familiar, mas não estou bem certo se sei quem é.

    Luc Sal, o ator foi o André Gonçalves. Diz que ele queria porque queria ficar conversando com o Pelé, que estaria viajando na 1º classse, e talvez devido ao excesso de álcool, ele se alterou e a turma do "deixa disso" não conseguiu colocar "panos quentes" e aí o MD-11 pousou em Belém para desembarcar o cidadão. Outro que dava trabalho era o Aginaldo Timóteo, e inclusive houve um episódio na Ponte Aérea da Vasp, que ele se alterou e foi desembarcado pela Federal!

    Abç, Roberto.

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  8. Paulo Gurgel Sobrinho17 de maio de 2010 às 22:00

    Nesse vídeo o Cmte. Carlos Dantas faz um vôo de Congonhas para a Pampulha: http://www.youtube.com/watch?v=PrC-v6MKefE&feature=related

    Esse cara dava uma aula de 737-300 nos seus vídeos e com direito a cross-bleed start.

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  9. é nao se pode esperar que a sua educação seja igual ao dos outros ! lamentavel pessoas assim

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