quinta-feira, 29 de julho de 2010

Levar ou não levar, eis a questão

O embarque de passageiros enfermos, acidentados, menores desacompanhados e de grávidas, é regulamentado por uma série de regras. Dependendo da doença ou da gravidade do acidentado, é necessário um atestado médico ou mesmo da presença de um médico para acompanhar o passageiro. Para as grávidas, dependendo do estágio da gestação, também é requerido um atestado médico. Acontece que voando pelo Brasil afora, principalmente em rotas que atendem regiões mais carentes de recursos, nem sempre o passageiro consegue cumprir com as regras. Nestes casos, o “problema” acaba caindo no colo do comandante do voo, que, se seguir as normas, o passageiro fica, e se as ignorar, o passageiro embarca.

No passado, na “velha Varig”, não era raro fazermos “vista grossa” para algumas regras para permitir o embarque do passageiro nestas condições. Acreditávamos no bom senso e achávamos que se algo desse errado teríamos o apoio da empresa, que colocaria o departamento jurídico ao nosso favor. Uma das regras que a maioria não se incomodava de violar, era quanto ao código de vestimenta requerido ao passageiro. É que antigamente era vetado o embarque com chinelo de dedo, mas como vetar o embarque de pessoas simples que, por exemplo, viajavam de Cruzeiro do Sul para Rio Branco calçando sandálias Havaianas? É bem verdade que sempre havia um ou outro comandante (geralmente recém promovido e ávido para por em prática seu poder de comando) que recusava o embarque destas pessoas. Felizmente o regulamento mudou e hoje basta estar “calçado adequadamente”. Mas este era um caso simples, mais complicado eram os casos de passageiros doentes e acidentados.

Certa vez, quando eu era copiloto de 737-200 e efetuava voo RG 254 de São Paulo para Belém com escalas, houve uma situação em que as regras foram ignoradas. Em Marabá se apresentou para o embarque um garoto que necessitava seguir para Belém em busca de atendimento médico urgente, pois havia sido mordido por uma cobra. O menino, que deveria ter 12 anos, estava realmente em péssimas condições, com uma das pernas inchada e envolta em ataduras. Ele não viajaria com a mãe ou com o pai, mas em companhia de uma senhora que dizia ser tia dele, e que tinha a incumbência de segurar um frasco de soro que estava sendo ministrado ao garoto. Além de não ter qualquer atestado médico que o liberasse para viajar de avião, ele mal conseguia se sentar corretamente, pois o corpo doía muito. Difícil a situação dele.

O comandante era o Eduardo Silveira, um excelente aviador oriundo da Cruzeiro, que conversando com o pessoal de solo em Marabá, iniciou uma coleta de informações para decidir se levava o garoto naquelas condições ou não. O menino estava vindo do hospital de Marabá que já não tinha como cuidar dele, por isso a necessidade de seguir para Belém. Seguir as regras e impedir o embarque seria uma crueldade. Por outro lado, ignorá-las, seria assumir a responsabilidade caso algo desse errado durante a viagem, coisa que não parecia improvável, tamanho era o sofrimento do menino. O comandante Eduardo fez o que era certo naqueles tempos, e decidiu ajudar.

Me lembro que assim que as portas do avião foram fechadas, fizemos uma operação “high speed”, ou seja, agilizando a partida dos motores, procedimento de taxi e voando na velocidade máxima do Boeing 737. Para o comandante Eduardo, aquela operação high speed era absolutamente normal, pois era assim que os pilotos da Cruzeiro voavam. Na aproximação para o pouso em Belém podíamos observar uma chuva forte sobre a cidade e que se dirigia para cima da pista de pouso. Nos últimos instantes, já cruzando a cabeceira da pista, entramos em uma chuva torrencial. Ainda bem que era o comandante que estava pilotando o avião, pois aquela situação estava além de minha capacidade. Talvez o mais prudente tivesse sido arremeter e aguardar pela melhora das condições, mas de acordo com as comissárias que estavam monitorando o garoto, 20 minutos a mais de voo poderia ser muito para ele. Apesar da chuva forte, foi um pouso perfeito, e assim que o avião foi estacionado, o menino desembarcou antes dos demais, sendo imediatamente acomodado em uma ambulância.

Fui copiloto do cmt. Eduardo Silveira em diversos voos no período de 89/90, e anos depois voamos juntos no MD-11. Ele continua voando aqui no Brasil, e sempre que eu encontro com ele nos corredores de aeroportos nós relembramos daquele voo em que a decisão dele provavelmente significou muito para aquele menino, talvez a própria vida.

15 comentários:

  1. Mariel Fonseca (sexo masculino)29 de julho de 2010 às 20:49

    Nossa, fantástico saber que o sr. fez o vôo o 254, o mesmo em que o cmte. César Garcez se perdeu, exatamente em um 737-200. O sr. chegou a conhecer pelo menos de vista o cmte. Garcez? Chegou a voar com ele ou ouviu de outros colegas como era o comportamento dele?

    Esse acidente do 254, ainda trás muita curiosidade das pessoas. Eu mesmo li o livro do Ivan Santanna (Caixa Preta) e o da Rita Gasparin (Vôo 254, Eu Sobrevivi), além de reportagens da Veja e uma série de outras. Entrevistas do Roberto Cabrini com o Garcez e o Zille, enfim.

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  2. Comandante, parabéns pelo Blog, rico em conteúdo e de fácil leitura.
    Embora tenha sido uma situação difícil, prevaleceu o bom senso - que aliás, deve permear todas as nossas ações, principalmente quando nos encontramos em situação de comando ou liderança.
    Gostaria de aproveitar e tirar uma dúvida: um comandante de 737 voa tanto o 700 como a versão 800 no dia a dia de forma alternada ou apenas um ou outro? A mesma coisa com relação ao A319/320, ou seja um comandante voa apenas A 319 e posteriormente passa para o 320 ou voa alternadamente um e outro?
    Mais uma vez parabéns pelo Blog.
    Grato.
    Fábio Caetano.

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  3. No blog mesmo, o Cmte já disse que foi F/O do Garcez. O 254 é famoso mesmo =D

    Beto, o senhor tem notícias do Garcez? Sabe como ele está?( Se ainda voa, onde ele se encontra).

    E o F/O daquele vôo, está no Brasil voando ainda?

    Ah, o mais importante: o senhor acha que o acidente do 254 foi mesmo causado pelo " orgulho " do Garcez ou foi uma série de fatores que o levaram ao acidente?
    Desculpe-me por tantas perguntas....=)

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  5. Comandante percebemos nos noticiarios que alguns dos assasino em evidencia na midia são transportados dentro dos aviões comerciais, esta semana eu vi que um dos acusados do caso mercia veio com um voo da tam escoltado por policiais armados, qual criterio para um policial viajar armado dentro de uma aeronave? querendo ou não existe um risco de um conflito e pode ocorrer o desarmamento deste policial e ocorrer um acidente, o comandante pode aceitar estas armas ou como funciona o procedimento.

    Com relação ao “high speed” eu ouvi um comentario de um comando da webjet que os colegas da tam voam mais rapido que os colegas da gol, me falaram que eles ganham por voo e os amigos da gol ganham por hora voada, procede

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  6. Que eu saiba na TAM se ganha por KM voado. Mas o rítmo na TAM como o próprio cmte. Beto já falou, é mais rápido.

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  7. Jorge se eu ganhasse por hora de voo no simulador estava rico rsrsrs por falar em simulador consegui importar as alavancas do speed brake e flaps levers, atualizei meu blog com as fotos delas

    projeto737ng.blogspot.com

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  8. Mariel, eu voei com o Garcez no Electra, quando fui copiloto dele. No 737, não chegamos a voar juntos, mas eramos colegas naquela época. Prefiro não fazer julgamentos em relação a personalidade dele, mas não há dúvida que isto foi mais um fator contribuinte para o acidente. Tenho uma postagem de fevereiro deste ano em que falo do acidente(http://betocarva.blogspot.com/2010/02/o-voo-254.html)Na época que eu voei 737-300 na Ponte Aérea, havia uma chefe de equipe que estava no acidente, a Solange, que não gostava de tocar no assunto.

    Fábio, quem voa o 737-700, também voa o 800 pois ambos são NGs, e a habilitação técnica é a mesma, o que não ocorre no caso do 737-300, cuja "carteira" é diferente. Isto no caso do Brasil, pois outro pais pode adotar regras diferentes. No caso do A-320 e 319 também é a mesma habilitação, voas-se ambos indistintamente.

    Luciano, é o que eu falei para a Mariel, prefiro não ficar dizendo se o Garcez era assim ou assado.Não sei deles, a última notícia era que ele tinha uma pousdada em Florianópolis.

    Ederson, com relação a passageiros armados, eu comento depois, pois estou em cima dfa hora, tenho que almoçar e correr para Congonhas pois vou trabalhar.

    Finalmente, a Gol paga por horas, assim como a maioría das empresas, inclusive a velha Varig, Vasp e Transbrasil. A Tam paga por Km.

    Abçs, Roberto.

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  9. um piloto habilitado para 737-700/800 poderia numa situação hipotética/dramática pilotar um 777, ou até mesmo um A340/380 ?
    Digamos, aquele cenário de filme "apertem os cintos o piloto sumiu", o piloto e copiloto do A380 morrem...
    Dá ?

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  10. Belo post Cmte.. Um certo dia estava embarcado em um vôo GIG-FLZ em um Mk-28 da TAM, logo após a decolagem um maluco que passou a noite bebendo apagou dentro do avião. A irmã dele ficou gritando feito louca. Sorte dele que o avião estava lotado de médicos, pois como nós, eles retornavam de um congresso no Rio. O Cmte. chegou a interromper a subida, logo em seguida o individuo recobrou a consciência e o vôo transcorreu sem problemas até mais ou menos o espaço aereo baiano, quando o individuo voltou a apagar dessa vez mais sério, foi estendido no chão, massagem cardíaca, nisso a chefe de cabine já vinha com o cárdio versor/desfibrilador. Eu que não sou médico ( minha esposa que é) fiquei olhando de longe e notei que o Cmte. começara uma curva para a esquerda. Depois de alguns minuto o individuo voltou, depois de mais uns 5 minutos de conversa entre o Cmte. e alguns dos médicos, o Cmte. resolveu prosseguir o vôo até o destino final.

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  11. Mas, e o menino? Está vivo ?

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  12. Ótimo texto, curto, direto e emcionante!

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  13. parabens comandante pelo seu trabalho, ha prazer aki eo carlos de curitiba rs motora da vam q conduziu o senhor e sua tripulação semana passada para o hotel, muinto bacana suas estórias, abraço e até mais ,

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