quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Na condução


Quando saímos de casa para uma programação de dias, uma parte deste tempo passamos dentro do transporte fornecido pela empresa. Em São Paulo (e antigamente no Rio de Janeiro, na época da “velha Varig”) há ônibus em horários regulares no trecho Congonhas-Guarulhos-Congonhas. Neste trajeto, que pode facilmente levar mais de uma hora, quase sempre encontramos colegas e amigos da aviação. Outras vezes encontramos na mesma condução os demais tripulantes do voo. Há dias em que aquele tempo entre um aeroporto e o outro é um momento de descanso e relaxamento, e outros em que colocar o papo em dia é a melhor coisa a fazer enquanto o ônibus vence o trânsito caótico da cidade de São Paulo.

É nas conduções fora de São Paulo, no trajeto aeroporto-hotel-aeroporto, que momentos gostosos podem ocorrer. Durante o voo nem sempre os comissários encontram tempo para ir à cabine de comando conversar, assim, é no caminho para o hotel que a tripulação pode bater um papo descontraído, e muitas vezes animado. Quando a tripulação é pequena o clima “a bordo” vai de acordo com o ritmo do comandante, que pode estar caladão ou animado e falante. Eu faço parte deste segundo grupo, embora tenha momentos em que aproveito este tempo para fechar os olhos e descansar.

Antigamente o carro número 1 para transportar os tripulantes era a velha, e não tão boa assim, perua Kombi. Até meados da década de 90, se a tripulação não fosse superior a sete pessoas, era sempre uma Kombi! Para tripulações maiores, tinha que ser um ônibus, ou pelo menos um microônibus.

Um código não combinado diz que os comissários novos seguem nos bancos de trás, e o copiloto ao lado do comandante. Já o comandante tem um lugar quase certo nestas conduções, que nos veículos pequenos é o assento atrás do motorista. Na velha Varig alguns ônibus tinham um cabeçote nas primeiras fileiras reservando os assentos aos comandantes. Uma grande bobagem, até porque o primeiro assento pode ser o mais perigoso, mas a verdade é que já houve vários casos de comandantes “desembarcando” do “seu” assento aquele que lá sentasse. Dizem que nestes assentos há um pino saliente sob o estofado, e por isso os comandantes fazem questão de se sentar ali. É o famoso “pino do comandante”.

Certa vez, acomodado na primeira fileira de assentos do ônibus estava um antigo comandante da empresa. Já havia se passado dois ou três minutos do horário de saída e o motorista parecia calmo em seu assento. O comandante, de uma forma rude que lhe era peculiar, deu uma chamada no motorista dizendo que já havia passado do horario. O motorista não gostou do comentário e, levantando-se, disse que se o comandante estava com pressa, que assumisse a direção. O que ele não sabia era que aquele comandante já havia sido caminhoneiro! Pela maneira que o comandante, já sentado no assento do motorista, engatou a primeira marcha e suavemente iniciou a movimentação, o motorista percebeu que o cara entendia do assunto. Sem graça, disse ao comandante-motorista que infelizmente a seguradora do ônibus não permitiria aquela situação, e reassumiu a direção do ônibus.

Da mesma maneira que a parte mais perigosa da profissão é o trajeto de casa para o aeroporto, também nas conduções passamos por riscos de acidentes. Em Fortaleza já houve vários casos, sendo que em um deles, o comandante ficou afastado do voo por meses para se recuperar das lesões. Mais recentemente, também em Fortaleza, houve um acidente grave e enquanto não chegava o resgate, transeuntes aproveitavam para roubar as malas dos tripulantes que estavam presos dentro do veiculo ou na calçada se recuperando do choque. Foi uma loucura, uma vergonha.

Nos Estados Unidos era muito comum a condução não ter espaço suficiente para carregar as malas da tripulação, então havia nelas um reboque com um trailer para colocar as bagagens. Certa vez, a caminho do hotel em Nova Iorque, a porta deste trailer abriu e algumas malas caíram na via sem que o motorista percebesse. A condução seguiu normalmente até que uma camionete que havia presenciado a cena passou freneticamente lado do ônibus buzinando e abanando umas roupas pela janela. Só podia ser um maluco! Mas eis que alguém percebeu que na caçamba da camionete havia umas malas claramente identificadas como sendo de tripulantes! O alerta foi dado e o ônibus parou no acostamento para resgatar os pertences que haviam caído.

Certa vez, naqueles meses de alta crise na velha Varig, no trajeto do hotel para o aeroporto de Heathrow, em Londres, a conversa estava num rumo baixo astral, pois um dos copilotos do voo não parava de falar da crise. Dizia que a Varig estava para quebrar, que a administração isso, que a chefia aquilo, que o governo não estava ajudando, que nada funcionava, os aviões estavam ruim, os voos atrasados, e que ia dar tudo errado. Por outro lado, dizia ele, a Tam estava com tudo: crescendo, ampliando a malha, recebendo novas aeronaves, contratando pilotos e com ótimas perspectivas para o futuro. Aquela conversa não estava legal, então pedi a ele para mudarmos de assunto. Em uma hora estaríamos decolando um MD-11 com 270 toneladas de peso e aquele momento estava inapropriado para aquele assunto baixo astral. Se ele desejasse, depois que atingíssemos o nível de cruzeiro, poderíamos discutir sobre a situação da Varig. Foram onze horas de voo até São Paulo e praticamente não se falou de crise.

Outra situação parecida aconteceu com o comandante Cunha, também em Londres, só que no trajeto aeroporto-hotel. Mal o ônibus deixou o aeroporto e o primeiro oficial do voo pediu permissão para atualizar os tripulantes sobre a situação da Varig. Este colega fazia parte da diretoria da Associação de Pilotos da Varig, que naquela época travava uma dura batalha pela sobrevivência da empresa. Aproveitando-se do sistema de som do ônibus, em pé no corredor, ele discorreu sobre a crise, as perspectivas, dificuldades, ações, enfim um briefing completo para os demais 15 tripulantes e mais alguns familiares que estavam a bordo. Um panorama terrível em que nem o mais otimista dos otimistas deixaria de se preocupar.

Aquele papo não fez bem a ninguém, e o corpo do comandante Cunha reagiu. Já acomodado no quarto do hotel ele percebeu que não estava se sentindo bem. Pressão, suor, taquicardia, algo estava errado. Ligou pra o médico de plantão que atendia os tripulantes em caso de necessidade e rapidamente foi examinado. O médico diagnosticou um caso de alto stress, dando a ele remédio pra pressão e impedindo que ele voltasse ao Brasil trabalhando. No dia seguinte, o comandante Cunha regressou ao Brasil devidamente acomodado na classe executiva e uma semana depois já estava apto a reassumir sua escala de voos. Condução não é local nem momento para baixo astral!

Recentemente fiz uma programação de dois dias com pernoite em Belo Horizonte. Foram apenas 12 horas de hotel, chegando as 22:40 hs e saindo as 10:40 hs da manhã seguinte. Não houve tempo para passeio, mas em compensação, o trajeto de 45 minutos entre o hotel e o aeroporto de Confins foi divertidíssimo! Seis tripulantes no fundo do microônibus conversando, contando piadas e casos engraçados. Foi, sem dúvida, o melhor momento de toda a viagem!




12 comentários:

  1. Busão lindão!

    Realmente deve ter sido uma barra para os funcionarios, enfrentar tudo que a RG iria passar

    Ótima semana cmte.

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  2. Boa noite Cmte, sou aluno de PC em Salvador e acompanho religiosamente as atualizações deste interessantíssimo blog. Só por curiosidade de mesmo sobrenome que o meu, esse Cmte Cunha foi trabalhar na Webjet após a Varig?

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  3. Por que meu comentário está sendo apagado?

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  4. Caro Leonardo, este Cmt Cunha voa em em uma outra grande empresa brasileira. Voa B 737.

    Mariel Fonseca, juro que nao sou eu quem esta apagando seu comentario. Que eu saiba, nem que quisesse eu conseguiria.

    Abc, Roberto

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  5. Belo post cmte, somente a aviação para nos proporcionar belos momentos como estes.

    Abraços

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  6. Creio que seja o blogspot que esteja apagando então, por eu ter postado um link.

    Beto, esse era o comandante Cunha: youtube.com/watch?v=GJN32tGXIWg

    Encontrei esse vídeo, justamente de um comandante também chamado Cunha e que também foi da Varig e que na época desse vídeo ele era da Webjet. Confirma aí pra a gente.

    Ah, o senhor conheceu também o comadante Gomes (chegou a ser chefe de equipamento do 747 na Varig)?

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  7. Olá, Meu nome é Gabriel e hoje faço exatos 14 anos, estou muito feliz e não perco um post de seu blog, fique sabendo que voce é e sempre será um exemplo para todos nós que queremos seguir a mesma carreira que a sua, Por enquanto sou piloto virtual e o meu maior sonho é ser piloto. Aguardo ansioso o seu próximo post e até mais.

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  8. Mariel Fonseca, o Cmt Cunha que eu conheço trabalhou na Varig por muitos anos, teve uma passagem rápida pela Tam e hoje é meu colega na Gol. Quanto ao Cmt Gomes, não o conheci pessoalmente mas já ouvi falar dele. Se não me engano a filha dele era comissária na Varig e se for quem eu estou pensando, já voei várias vezes com ela.

    Caro Gabriel, obrigado pelo seu comentário. Siga em frente no seu objetivo, não descuide do "inglês", e quem sabe um dia ainda voaremos juntos.

    Um grande abraço, Roberto.

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  9. José Jorge de Oliveira21 de fevereiro de 2011 às 22:36

    Comandante, o senhor pretende se aposentar assim que atigir os requisitos para tal, ou permanecer voando até enquanto a saúde permitir? O senhor considera a profissão arriscada?

    Parabéns pelo seu blog, conheci hoje e já adorei, muito bem escrito, didático e com um exemplo de profissional competente.

    Muito obrigado por manter este blog e ótimos vôos.

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  10. Olá Beto,
    Quem me indicou o seu blog foi o Lito (Avioes e Musicas) pois fiz essa pergunta ha algum tempo no site dele:
    "Gostaria de saber se os pilotos de avião tem a mesma mania dos motoristas de onibus, de que quando se cruzam nas “estradas” fazem sinal de luz ums para os outros???
    Esses dias quando fui para o RJ pela WJ e o piloto diversas vezes “piscou os farois” durante a viagem, pode ser para alguma aeronava em sentido oposto??? E foram diversas vezes com um bom intervalo de tempo entre uma vez e outra."
    Parabéns pelo blog, muito legal!!!
    Obrigado
    Abraço

    Ricardo

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  11. Caro José Jorge, quero me aposentar aos 60 anos, mas se nesta idade eu estiver bem de saúde, meu emprego estiver bom ou vou trabalhar mais um pouco. Por outro lado, mesmo nestas condições se minha situação financeira permitir eu paro de trabalhar e vou passar os dias no clube jogando tênis e encontrando os amigos. Outra coisa que vai pesar e se os filhos vão estar ou não independentes financeiramente, o que eu espero que ocorra. Quanto a se eu considero a profissão arriscada, a minha resposta é NÃO. Me sinto muito seguro dentro do avião, especialmete quando eu estou no "comando". Agora, tem uma coisa: mais dia menos dia (mais anos, menos anos)um acidente vai ocorrer com uma das 5 empresas aéreas (Tam, Gol, Azul, Web ou Oceanair/Avianca)! Espero que não seja comigo e nem na Gol. Uma destas tem mais "tradição" em acidentes. Toc, toc, tos, bate na madeira...

    Caro Ricardo, de fato os pilotos as vezes agem como caminhoneiros e piscam os farois para outras aeronaves que vem em sentido oposto. Antigamente isto ocorria com mais frequência, mas hoje, com o TCAS, não precisamos piscar os farois para serem visualizados pelos pilotos do avião que vem em sentido contrário. Ainda assim, os saudosistas gostam de uma "piscadinha".

    Abçs, Roberto.

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