sábado, 4 de setembro de 2010

Os que moram na mala

A aviação comercial, por proporcionar passes de viagens e passagens com desconto, permite que seus tripulantes optem por morar bastante longe de suas bases de trabalho. Principalmente quando voando nas rotas internacionais, e portanto com menos viagens por mês, pilotos e comissários se sentem encorajados a morar em suas cidades de origem ao invés de fixar residência em São Paulo ou Rio de Janeiro, por exemplo. Com isso há colegas morando nos cantos mais improváveis, quando se pensa que o local de trabalho é Congonhas ou Guarulhos.

Há quem more, ou pelo menos tente morar, em Fortaleza, Belém, Recife e Salvador. Minha mulher tem uma colega que consegue morar em Buenos Aires! Em Porto Alegre e Curitiba há uma quantidade inacreditável de tripulantes que estão sempre vindo para São Paulo para assumir programação de voos e em seguida tentando retornar para suas casas. Digo tentando, porque os passes de viagens dos tripulantes só dão direito ao embarque se houver disponibilidade de assentos. Na área do Rio de Janeiro (incluindo Niteroi, Petrópolis e Teresópolis) há uma verdadeira "base fantasma", tamanha é a quantidade de tripulantes que se recusam a deixar a "Cidade Maravilhosa", já que com o fim da "velha Varig" a base Rio foi extinta. As empresas não fazem objeção  ao fato do tripulante morar onde quer que seja, desde que ele se apresente no local e horário previsto.

Quando eu entrei na Varig, poucos eram os que moravam fora de São Paulo ou Rio de Janeiro. Naquela época, até completar um ano de "casa" os passes eram limitados a um por mês, então o jeito era escolher entre SP ou RJ e fixar residência. Com o tempo a política de concessão de passes e passagens foi ficando mais liberal e um verdadeiro êxodo ocorreu em direção a outras cidades. Florianópolis foi uma das cidades que acolheu dezenas de tripulantes, sejam eles de lá mesmo ou de outras cidades. Belo Horizonte também tem uma legião de tripulantes que lá moram.

Estas pessoas que moram fora se sentem felizes por residir onde desejam. Estão perto dos familiares, próximo aos amigos, da família do marido ou da mulher, moram em frente a praia, num rancho junto à mata, em cidades do interior, em casas grandes confortáveis, enfim, conseguem ter uma boa vida e principalmente, proporcionar à suas famílias uma qualidade de vida que não teriam em São Paulo. Em compensação, não é fácil para eles estes deslocamentos de/para São Paulo. Além de depender de vagas nos voos, ficam a mercê das condições meteorológicas dos aeroportos, eventuais problemas de manutenção, caos aeroportuário e outros contratempos. No regresso a suas casas após uma programação, atrasos e imprevistos são chatos, mas não são tão estressantes. O problema é quando o tripulante está se deslocando para São Paulo com a finalidade de assumir voo, com horário a cumprir,  por isso um bom planejamento é essencial. O tripulante precisa ter em mente quais são as opções de voos do dia, e nunca deixar para pegar o último. Deve levar em consideração se é domingo ou final de feriado, bem como se haverá nevoeiro na área do aeroporto. Além disso há a questão da senioriodade e antiguidade na empresa, já que quando resta poucos assentos no avião, é ela quem determina a prioridade para embarque. Em primeiro lugar os comandantes, depois os copilotos e finalmente os comissários, sendo que entre o mesmo grupo, leva a melhor quem tiver mais tempo de casa naquela função. Assim, é comum o copiloto novinho e principalmente o comissário novinho, "sobrar" e ter que tentar embarcar no próximo voo.

Todo este pessoal que mora longe e depende de voos para vir à São Paulo, frequentemente precisam pernoitar por aqui. Há um grande grupo que não possui local fixo para ficar, e assim, ficam em um hotel próximo a Guarulhos ou a Congonhas. Um outro grande grupo divide um apartamento com outros colegas que vivem a mesma situação. Sempre próximo ao aeroporto, estes apartamentos podem ser compartilhados por vários tripulantes, que na verdade quase não se encontram, pois eles ficam muito pouco por aqui já que estão sempre arranjando um jeito de voltar para suas casas. Que tal oito pessoas dividindo uma "kitnet" de trinta metros quadrados? Por fim há os que não ficam em hoteis e também não dividem apartamento com ninguém. Estes, ficam no aeroporto e quando necessitam de um sono podem optar por um cochilo em confortáveis poltronas localizadas em uma sala de descanso nas dependências da empresa ou ainda no "Fast Sleep". O Fast Sleep é uma espécie de mini hotel dentro do terminal de passageiros do aeroporto de Guarulhos, com acomodações pequenas, limpas e silenciosas,  providas ou não de banheiro privativo em que a cobrança é por hora. Então é comum que os tripulantes descansem por períodos de cinco ou quatro horas durante as madrugadas.

Eu não acho que este esquema de morar em outra cidade seja bom, não funcionaria para mim. Mas eles gostam e juram que assim conseguem ter uma qualidade de vida melhor. Há um colega que mora em Toledo/PR, que fica a 160 quilômetros de Foz do Iguaçu. Ao desembarcar em Foz ele pega pelo menos mais duas horas de estrada para chegar em casa. Ele diz que vale a pena, já que toda a família dele e da esposa são de lá. A mulher dele tem um bom emprego e a sogra ajuda na criação dos filhos. Ele consegue ir para a casa a cada dez ou quinze dias. Uma outra colega, copiloto da empresa,  mora em Curitiba. Tudo bem, Curitiba é perto, porém há o problema constante do nevoeiro na região do aeroporto Afonso Pena, além disso, ela voa preferencialmente na escala bate-volta saindo e chegando de São Paulo, pois possui filhos pequenos e para complicar um pouco mais, o marido dela também é copiloto e portanto vive fora de casa. Que vida é essa?

Ultimamente tenho visto uma movimentação em ambos os sentidos por parte de alguns colegas. Alguns que por anos moravam em São Paulo, decidiram voltar para suas cidades de origem e hoje estão em Porto Alegre, Campo Grande ou Brasília. Outros, cansados de "viver na mala", estão fazendo o inverso e se mudando de vez para São Paulo com o intuito de se adaptar e tentar tornar a vida mais fácil. Sei que a vida em São Paulo não é simples, seja pelo custo de vida, violência, trânsito infernal e outros tantos fatores. Mas me sinto um felizardo por ter toda a minha família aqui e principalmente, por gostar de morar nesta cidade tão complicada.

16 comentários:

  1. É, realmente as opções para quem não quer morar em São Paulo não são muito boas, ao tempo que morar em São Paulo também não é bom. Visitei São Paulo algumas vezes e sinceramente eu só moraria em São Paulo se não houvesse jeito de morar em outro lugar. Não gostei da cidade, trânsito muito ruim, muito violenta, algumas coisas são muito longe, é difícil dirigir (se errar uma rua, lascou-se, vai rodar muito pra corrigir o erro) e etc.

    Em Florianópolis eu moraria, com certeza. Visitei a cidade a trabalho e adorei. Aquilo sim é cidade maravilhosa, não é a toa que muitos estrangeiros chamam de The Magic Island.

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  2. Muito bom Cmte..Realmente o nosso "morar na mala" é algo que acompanha nossa profissão...Já passei por isso , mas não tão frequente como em linha!E digo , que apesar de mais cansativo, estou louco para que essa rotina comece logo para mim ... "Ossos do oficio" que aturamos pela nossa paixão de voar , risos! Grande abx
    Giovanni H.

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  3. Grande Carvalhinho!


    Existe uma outra categoria de gente que "mora na mala" que você esqueceu de mencionar neste que é mais um dos seus excelentes "posts".

    Especialmente depois da quebra da Varig, existem vários pilotos brasileiros que trabalham em emprêsas estrangeiras em regime de "commuting", ou seja, são aviadores que têm suas escalas de vôo condensadas de forma a obterem cerca de quinze dias de folga consecutivos, geralmente a cada dois mêses.

    Por causa do trabalho da mulher, da escola ou da faculdade dos filhos, bem como por diversos outros motivos, esses pilotos optaram por manter suas famílias no Brasil adotando esse ritmo de vida peculiar que, diga-se de passagem, é muito sacrificante.

    Imagine o que é morar no Brasil e voar para emprêsas cuja base fica na Coréia do Sul ou na China. A cada 60 dias ele têm que, literalmente, cruzar meio mundo para voltar ao lar. Tendo em conta que eles gastam dois dias para chegar ao Brasil e outros dois dias para retornarem às suas bases, resta-lhes apenas pouco mais de uma semana para o convívio familiar. Muito pouco, né?

    Contudo, algumas emprêsas facilitam bastante a vida destes colegas ao programarem suas escalas de modo a permitir que eles terminem e comecem suas programações a partir da Europa, diminuindo significativamente o tempo de viagem.

    Outra coisa que torna esse estilo de vida bastante estressante é o fato de que esses deslocamentos são normalmente feitos na condição de GC (ou ID 90), o que significa que eles só viajam se houver lugar disponível no vôo.

    Infelizmente, não são assim tão raras as vêzes que eles perdem um dos seus raros dias de folga por conta do vôo estar lotado. Nesses casos, a alternativa - vista até que com uma certa alegria - é encarar um vôo de 12 horas confortavelmente sentado em um "jump seat" ao lado do banheiro do avião.

    E isso tudo sem falar nas demais dificuldades que fazem parte da vida de um expatriado. Bom, mas isso é assunto para um outro "post". Fica aqui a sugestão...

    Um forte abraço,


    Moraes

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  4. Caro Moraes, estava no Valle Nevado quando acessei meu blog e li o seu comentário no post "A escala". Bons tempos em que voamos no "brega" e depois na Ponte. Eu não esqueci daqueles que estão morando no exterior, bem como daqueles que moram a 3 ou 4 horas de carro de São Paulo. Mas o post iria ficar muito grande e na internet, ninguém gosta de textos grantes. Com sua licença, vou transformar seu comentário num futuro Post para a semana que vem. Admiro muito, todos voceis que estão voando na Europa, Oriente Médio e Ásia, e é claro que isso é mais um motivo para lamentar a quebra da "velha Varig" que fez com que tantos excelentes profissionais tivessem que migrar para países tão distantes. Um grande abraço, e obrigado por prestigiar o meu blog. Carvalhinho...

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  5. Caro amigo,

    Seria um enorme prazer poder colaborar com esse seu excelente blog que nos mantém conectados aos amigos e ao Brasil.

    Por isso, sou eu quem agradeço a você.

    Um abração,

    Moraes

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  6. Esse blog a cada dia que passa fica melhor, é minha leitura obrigatória, quase que diária. Parabéns comandante, seu blog é 10!

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  7. Pra você Beto hoje em dia quais são os pontos negativos da aviação?
    Abraço

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  8. Se lembrarmos de como era a aviação do passado, os pontos negativos são basicamente salário e perspectiva de uma carreira de voos internacionais, pelo menos no caso das empresas que só voam pelo Brasil e América do Sul. Com relação a quantidade de trabalho X número de folgas, isto sempre foi cíclico, ou seja, há períodos em que se voa mais e folga menos e outros em que voa-se menos e folga-se mais. O problema é que hoje em dia a remuneração está muito associada ao número de horas extra por mês, e então naquele mês em que se voa menos (e por isso, ganha-se menos diárias de alimentação e ficando em casa gasta-se mais) a remuneração vai lá em baixo. Hoje em dia, se o tripulante entra com dispensa médica, o salério cai, se há muitos dias de curso em determinado mês, a remuneração cai. Então basicamente é a questão da grana, que já foi bem melhor na era pré TAM; GOL, AZUL e etc. Quanto a o nívem dos hoteis que não é como antes, isto não é tão importante. Voar no exterior eu não quero, na Tam não é fácil as relações empregado/patrão, na Gol não há aviação internacional, na Azul o salário é mais baixo, nas Web Jet... Quem sabe uma executiva de alto nível não seja o meu futuro.

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  9. Uma executiva de luxo, a remuneração ta quanto?

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  10. Com todo o prazer o Sr. ganhou meu voto para o seu livro Cmte!Vou cobrar um livro com muitas histórias inéditas , risos! Bons vôos , grande abraço
    Giovanni H.

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  11. Bom dia, meu nome é Lucca Mourão, sou piloto de B737 e tenho interesse na China Airlines, alguém possui alguma informação sobre salario e folga??Obrigado!

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  12. Caro Metal, não sei ao certo, mas acho que uma executiva "top" deve pagar por volta de 30 mil reais brutos, mais benefífios.

    Caro Lucca Mourão, dê uma olhada no site Pilot Pointer (http://www.pilotpointer.com) lá há um "banner" justamente a respeito de empregos na china. Veja também no site do Sindicato dos Aeronautas (http://www.aeronautas.org.br/blogs/servico-social/balcao-empregos)

    Abç, Roberto.

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  13. Obrigado Roberto! Vou olhar sim!

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  14. Ótima matéria, Comandante! Venho tendo dificuldade para entrar na aviação civil seja em que área for, faz 8 anos que minha vida vem tomando rumos totalmente diferentes. O senhor poderia fazer uma matéria mostrando outras profissões e cursos que fora piloto e comissário que estão em alta? Gostaria de saber outras profissões que a aviação civil está precisando. Talvez em outra área eu consiga me aproximar da Aviação Nacional. Grande abraço!!! Arcoverde

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  15. Cmte. passando aqui rapidamente, vi pessoal dando dicas de certos assuntos , deixo algumas sugestões : Vida de Copiloto , Cmte. além das 4 faixas , coisas diferentes vistas a olho nu (coisas que o TCAS nao pega), Controle de tráfego aéreo (qnd eles ajudam e qnd "atrapalham") , serviço de bordo antigo e atual , amizades dentro do trabalho , etc .

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  16. Excelente!!!

    Tinha essa dúvida.
    Moro no norte do país e sei que por aqui não tem base das grandes empresas e que terei que fazer esse sacrifício de ir pra louca São Paulo para ser responsável para com a minha escala de voo.
    Tudo pela aviação!

    Obrigado comandante por mais esse post.

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