terça-feira, 23 de agosto de 2011

Ponte Aérea, uniforme e chinelo de dedo.

Era um voo da Ponte Aérea, ainda na época do Electra. Já era noite e durante o embarque a porta da cabine de comando permanecia aberta enquanto os tripulantes efetuavam os preparativos para a partida e decolagem. Um dos passageiros, o Jô Soares, que além de assíduo na Ponte Aérea era também um grande entusiasta do Electra, adentrou a cabine de comando e após saudar a tripulação perguntou ao comandante qual era a hora prevista de chegada em São Paulo. O comandante disse que seria por volta de dez e meia a onze horas da noite. Diante da imprecisão da informação, Jô Soares comentou: - Dez e meia, onze horas...Não está muito preciso este estimado. O comandante Cezar foi rápido, e disse que a chegada em São Paulo estava igual ao programa do Jô que começava onze meia, meia noite e às vezes até mais tarde.

Após acordar em Salvador antes do nascer do sol, chegamos em Foz do Iguaçu por volta de meio dia. Chegamos famintos e ao efetuar o check-in no hotel não perdemos tempo para ir a uma churrascaria que havia do outro lado da estrada. Para não perder tempo eu e o copiloto tiramos as divisas da camisa de voo e deixamos o quepe e a mala na recepção do hotel. Era uma típica churrascaria de beira de estrada: dois ônibus estacionados no pátio, vários turistas brasileiros e argentinos e um cantor com um repertório duvidoso. Sentamos numa mesa de canto e desfrutamos de um belo churrasco. Na hora de pedir a conta veio a surpresa: O garçom, nos julgando pelos nossos uniformes (sapato preto, calça azul marinho e camisa branca), achou que éramos os motoristas dos ônibus de excursão, e disse que o almoço era uma cortesia, que éramos da casa. Agradecemos e saímos “de fininho”.
Uniforme de piloto é assim; quando completo, ficamos elegantes, mas em compensação, sem quepe e faixas douradas podemos facilmente passar por motoristas, zeladores ou porteiros. Há uns anos atrás, após chegar em casa vindo do aeroporto, precisei comprar umas lâmpadas, fita isolante e interruptores elétricos. Tirei as faixas douradas, o quepe, a gravata e o paletó e fui a pé até numa casa de materiais de construções. Escolhidos os produtos, ao me dirigir ao caixa eu soube da novidade: o vendedor me perguntou qual era o prédio em que eu trabalhava, pois porteiros e zeladores ganham um desconto especial sobre o valor da venda!
No dia a dia de um tripulante estamos constantemente agindo conforme os diversos regulamentos e normas que regem a aviação comercial. No entanto, algumas normas são, ou pelo menos, eram extremamente anacrônicas, por isso, desde que não afete a segurança do voo, e justamente para não causar maiores transtornos e atrasos à viagem, pode acontecer do comandante “fechar os olhos” para certas regras.
Um exemplo desta situação ocorria em decorrência de uma norma em que não permitia que o passageiro viajasse com chinelo de dedo ou camiseta tipo “regata”. Até pouco tempo atrás alguns poucos comandantes levavam muito a sério esta determinação e não raro impediam o embarque de passageiros nesta condição. Uma tremenda falta de sensibilidade, especialmente porque geralmente isso ocorria com passageiros menos favorecidos, embarcando em localidades com Cruzeiro do Sul, Marabá ou Tabatinga. Ainda bem que é uma norma antiga que não vigora mais,  pois como desembarcar tanta gente de bem, e até passageiros famosos que viajam de sandálias Havaianas? Além do mais, hoje em dia qualquer um pode voar!
Certa vez, ao pousar no Santos Dumont, fui procurado pelo pessoal do despacho de passageiros que precisava da minha ajuda para solucionar um problema. Havia um passageiro que tinha sido impedido, pelo comandante da Ponte Aérea anterior, de embarcar para São Paulo. O passageiro era um cantor baiano que fez sucesso nos anos 80 com músicas do estilo “axé-reggae-pop” e que, não sei por qual motivo, estava descalço! A despachante disse que ele tinha desembarcado no Galeão e que sua mala havia sido extraviada e que ele já estava há horas no saguão tentando embarcar. Ainda assim eu não conseguia compreender o porquê dele estar descalço, mas como ele estava se tornando um problema para a empresa e acreditando que devemos solucionar os problemas e não aumenta-los, resolvi autorizar o embarque do cidadão. Ele estava acompanhado e pedi para que ele e o amigo embarcassem antes dos demais passageiros e que fosse reservado a eles o assento junto à janela e o imediatamente ao lado. As comissárias não gostaram da minha decisão, e menos ainda ao medir o passageiro da cabeça aos pés, que por sinal, estavam sujos como se há muito não fosse lavado! Eu disse a ele que ao autorizar o embarque eu estava abrindo uma exceção para resolver o problema. Por isso ele deveria sentar junto à janela, cobrir as pernas e os pés com uma manta e só se levantar para o desembarque após todos os demais passageiros terem desembarcado. E assim foi feito, o problema foi solucionado sem prejuízo aos demais passageiros.
   Ao contar o caso para a minha mulher, ela disse que anos antes, em 1988, este mesmo cantor tinha viajado num voo dela, e que ele ficava descalço no avião, era uma característica dele!    
Em outra ocasião, também na Ponte Aérea, presenciei um flagrante desrespeito às regras e desta vez, ameaçando a segurança. Durante o embarque dos passageiros, numa época em que não havia as pontes de embarque, um cidadão acende tranquilamente um cigarro enquanto aguarda na fila para subir a escada do avião. Uma tremenda falta de respeito e de bom senso, afinal, um cigarro aceso no pátio é um risco a segurança, pois há diversas aeronaves sendo abastecidas e possíveis vapores de combustível no ar. Imediatamente abri a janela da cabine de comando e gesticulei para que ele apagasse o cigarro! Ele deu uma longa tragada, jogou o cigarro no chão e pisou para então apaga-lo.
Fiquei bravo com o passageiro que continuava na fila para embarcar. O copiloto aproveitou para dizer que achava que eu deveria impedir o embarque do passageiro, pois se ele estava fumando no pátio, era bem capaz de acender um cigarro durante o voo. Bem que ele merecia, porém, para impedir o embarque dele, eu teria que chamar o pessoal do despacho, teria que confrontar o passageiro e possivelmente chamar a Polícia Federal. Isso evidentemente causaria atraso no voo, transtorno aos demais passageiros, e um stress desnecessário. É verdade que o tal passageiro desrespeitou uma norma de segurança, mas foi fora do avião, fora da área de minha responsabilidade, e não poderia recusa-lo baseado no pressuposto que ele iria acender um cigarro durante a viagem. Como eu acredito que não devemos causar mais problemas, e sim, resolve-los, apenas aguardei o passageiro na porta do avião e passei uma leve descompostura nele. Decolar emocionalmente estressado é péssimo, e mesmo um caso simples como este fez com que durante o taxi eu ainda estivesse um pouco estressado, imagine se eu  tivesse sido rigoroso e impedido o embarque do cidadão?
O voo trancorreu normalmente, sendo que no desembarque o passageiro reiterou o pedido de desculpas alegando que estava desatento no momento que acendeu o cigarro. 

                                                                                        

11 comentários:

  1. Parabéns pela atitude de deixar os passageiros embarcarem, acho um absurdo não poder viajar com chinelo e regata.

    bons voos

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  2. É, mas vejamos: você está acompanhado de sua esposa, mãe e filhos, e justamente ao seu lado e ao lado de sua filha, está sentado uma pessoa com camisa regata. Cada vez que ele levanta o braço vem aquela visão (e cheiro, talvez) nada agradável. Ao lado de sua mãe há um cara de chinelo de dedo que insiste em cruzar as pernas deixando a mostra unhas feias e sujas. Nada agradável né? Uma coisa é a Angelina Jolie de regata e chinelo de dedos, outra é um cara feio,grande e suado. Será que estou sendo preconceituoso e sexista?

    Abç, Roberto.

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  3. Muito legal essa história comandante. Gostei muito da parte que você saíram de "fininho", não deu para conter o riso! E eu gostaria de agradecer por aceitar fazer a entrevista, amanhã mesmo vou enviar as perguntar para o e-mail do senhor, Abraços!

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Caro Cmte,

    Recentemente, aqui em Brasília, testemunhei um passageiro fumando no pátio. Trata-se de um senhor que embarcou no mesmo voo que eu... como foi um embarque em ponto remoto (com o famoso ônibus...), o camarada aproveitou a deixa das pessoas entrando no ônibus para ir até um cantinho dar uma fumada.

    Depois ele entrou no ônibus e chegou a comentar com alguém perto de mim que estava com medo de voar... e resolveu dar uma fumadinha para relaxar.

    Acho que às vezes, a pressa para não atrasar os voos acaba fazendo com que a equipe de apoio não fiscalize tais atos, e gera este tipo de problema... que desnecessariamente coloca a vida das pessoas em risco.

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  6. Nega do cabelo duro
    Que não gosta de pentear
    Quando passa na baixa do tubo
    O negão começa a gritar

    Bom era o tempo em que os artistas não tinham criatividade suficiente pra inventar a gaiola das popozudas. Vida longa ao Luiz Caldas!

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  7. Caro César, vc tem faro para música "axé-regae-pop"!

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  8. O comandante Cézar do Electra, por acaso tinha Garcez como nome de guerra?

    Abraços,

    Jorge

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  9. Canto de Axé que não gosta de andar calçado é o Luiz Caldas. Teria sido ele o passageiro descalço.?

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